sexta-feira, agosto 26, 2005

Anatomia de Fullana, A Boca


O Beijo, Rodin
Originally uploaded by jaugusto1.
Quando te conheci nossas bocas sorriram. Distantes alguns metros, limitaram-se a exibir uma discreta simpatia numa troca gentil. Nos seus ofícios só sabiam falar. Falavam-se o necessário.
Na arte de falar e sorrir conquistaram-se numa troca de afetos e tonalidades. Já eram conversas e alegres sorrisos. Tinham alegria em falarem-se.
Nessa proximidade da conquista os aromas foram incorporados ao conjunto de sensações que passariam a me fazer lembrar de você.
Seguindo a construção afetiva, já regada a paixão, sabores passaram a freqüentar nossas bocas em beijos desajeitados num primeiro momento, mas que fizeram-nas se moldarem uma à outra de tal forma, que hoje beijo-te mesmo com tua boca ausente.
E com os sabores vieram as texturas. Tão diversas que espalharam prazer em deliciosos beijos por todo o nosso corpo.
Hoje, mesmo que nossas bocas não troquem sequer um som, desejam-se como sempre, num eterno beijo imortalizado por você, Fullana.

quarta-feira, agosto 24, 2005

Aviso aos Navegantes

Aos que ainda se dão ao trabalho de ler este blog, alguns com uma certa habitualidade e paciência monástica, peço que não se assustem caso percebam o desaparecimento de alguns textos (o que já pode ter acontecido).
Iniciei a elaboração de meu primeiro livro de contos e vou aproveitar alguns enredos, reescrevê-los, juntá-los a outros inéditos e colocar meu bloco na rua.
Àqueles ansiosos (que pretensão!), que aguardam um livro sobre Fullana Maria, minha eterna musa inspiradora, informo que esse já está em andamento.
Devido à necessidade produtiva de inéditos, talvez altere um pouco as características básicas deste blog escrevendo outras coisas, em outros formatos. Aliás, vou me valer de uma idéia do Branco Leone e aceitar (PEDIR) sugestões de temas para eu escrever e publicar neste blog. Vamos lá, participem dessa aventura a várias mãos que, articuladas com criatividade, poderão nos proporcionar muito prazer. Aviso: Não é sexo grupal.

segunda-feira, agosto 22, 2005

Aprendendo

Abandono hoje os contos para contar uma outra história. Real, mas daquelas que poderiam passar despercebidas não fosse a existência de criaturas teimosamente especiais.
Há oito meses cumpro um ritual quase islâmico de peregrinação à minha Meca, meu oráculo, à casa de meu pai.
Infelizmente, como alguns sabem, um homem que caminhava diariamente, tinha pressão arterial normal, bem melhor que a minha, auxiliava na manutenção de três creches, e lidava lá com suas imperfeições, teve o cérebro varrido por um acidente vascular cerebral hemorrágico e isquêmico que lhe consumiu um terço de massa cinzenta tornando-a inoperante.
Esse homem, que hoje só tem dois terços do cérebro a lhe comandar os movimentos, pensamentos, desejos e funções vitais, parecia, aos meus olhos, transformado em outro homem. Hemiplégico, sem condições de movimentação sequer para virar-se na cama, passou a merecer atenção especial de amigos, vizinhos e parentes.
Mas, na seqüência da vida, a rotina de cada um foi tomando seu espaço. O tempo foi passando e os amigos aparecendo menos, os vizinhos igualmente, os parentes da mesma forma. Cada um seguindo às necessidades de suas vidas.
Mesmo estando em casa, cercado de um mínimo conforto e atendimento, aquela limitação tornou-se mais evidente. Há tempos eu sentia um incômodo em vê-lo naquela situação mas não percebia que também participava de tudo. Tinha passado a visitar um doente e não mais o meu pai. Sempre a rotina nos anestesiando.
A partir dessa percepção e numa tentativa de livrar-me da culpa, propus um domingo diferente, sem imaginar que aquele velho homem ainda me reservava mais um ensinamento. Juntei os netos, ele e passamos um domingo como há oito meses não passávamos. Fizemos almoço juntos, saímos de carro e passeamos na rua, brincamos com cachorros, discutimos futebol, falamos mal da família, tudo com dificuldades e limitações, mas foi divertido.
Deixei-o dormindo um sono traqüilo e voltei para minha casa. À noite, o telefone toca. É ele.
- Oi meu filho. Estou ligando para te agradecer uma coisa. Quando eu pensei que a vida tinha acabado, você me mostrou que não.
Mandou-me um beijo, desejou boa noite e desligou sem me deixar falar nada. Não falaria.
Sem saber, quem mais uma vez me mostrava algo era ele, meu pai.
Com um teço do cérebro morto, ainda me ensina coisas das mais importantes. Do amor.
Porque estou escrevendo isso? Porque meu pai sempre me inspirou as melhores coisas. As piores, eu aprendi sozinho mesmo.

quinta-feira, agosto 18, 2005

Gesto Salvador

Se não for ao templo não vai sair. Recebeu a ameaça e ficou sem saber o que fazer. Enrolou-se no lençol, tal qual uma burka, com os olhos negros de fora, indignado. Tinha ensaio com sua banda de rock, adolescente como ele. Teve vontade de gritar mas convenceu-se de que não adiantaria. Preferiu abraçar a guitarra que compartilhava a cama.
Resignado como sempre, concordou. Tá bom, eu vou. Mas depois vou sair, negociou pensando que estava equilibrando a situação. Vai lá, menino. Talvez te convidem para tocar no grupo da igreja, argumentou a senhora, convicta de que estava oferecendo-lhe um caminho melhor. Ele torceu a boca e preferiu não comentar.
Passaram algumas horas e lá estava aquele menino cabeludo entrando no templo religioso. Nunca tinha imaginado ir num lugar daqueles.
Rapidamente foi cercado por animados religiosos que se encarregaram de encorajá-lo a aceitar o Senhor. Ele apenas sorria educadamente. Ofereceram água e colocaram-no na primeira fila sentado sem muito aperto. Apesar da sua aparente displicência, percebeu o burburinho daqueles que tinham como certo um relato futuro de conversão. O menino que nem se preocupava com isso, estava ali sentado como quem toma um comprimido para não ter dor de cabeça.
Um senhor de terno ocupa uma pequena tribuna, cumprimenta a todos e dirige um olhar especial a ele, que não chega a abalar-se. Era tranqüilo.
Ao convite para o louvor, um conjunto dispara seus instrumentos eletrônicos numa melodia feita para chorar. Não chegou a entender o que cantavam mas percebeu claramente que as cordas si e mi da guitarra estavam desafinadas e que o baterista se atrapalhava no contra-tempo. Achou que a cantora poderia ter problemas vocais se continuasse abusando dos gorjeios e ressonâncias. Mas, não era a banda dele.
O orador falou durante uma hora, o que lhe rendeu um pouco de sono que só foi quebrado quando aquele senhor começou a falar numa língua estranha, incompreensível, que parecia ter mais consoantes que vogais. Disseram ser a língua do senhor. Teve vontade de perguntar porque o senhor falava numa língua que ninguém entendia mas não deu tempo, o conjunto começou uma nova música.
Após oito hinos, dois sermões, muitos louvores, sono e a bunda dormente, sentiu terminado seu compromisso. Levantou-se, arrumou a velha calça jeans, os cabelos e dirigiu-se à saída do templo quando foi abordado por um grupo.
- E então, você aceitou Jesus?
O menino sorriu timidamente e, contemporizando:
- Vou pensar, tá legal?
O grupo, ainda esperançoso, pediu que pensasse com carinho.
Já no portão, recebe um aceno de todos com um até o próximo encontro.
Educadamente ele sorri e num gesto quase automático ergue a mão direita fechada em punho, levanta o indicador e o dedo mínimo despedindo-se com um aceno em forma de chifres.
Roqueiro, traiu-se num último gesto para decepção geral entre os obreiros. Coisas da sinceridade juvenil.

terça-feira, agosto 16, 2005

Inércia e Destino

Naquela tarde de sol, ele sentou na areia e ficou lá olhando o mar. O céu, nesses dias de inverno, ficava incrivelmente azul e o sol em nada lembrava àquele dos dias de praia cheia. O sol era também de inverno. Morno, doce, parecendo chá do final de tarde.
O mar estava particularmente esverdeado e no horizonte confundia-se com o azul do céu. Talvez mera tonalidade.
Lembrou-se do edredom de dupla face que usava para cobrir-se nessas noites de inverno. Uma vez azul, outra verde. Macio como a pele de Fullana.
Uma onda mais forte traz a espuma morna, comum no inverno dessas praias do Rio, que envolve os seus pés para depois desfazer-se em gotas de sal.
A mesma onda traz uma rosa branca ainda bela, deixando-a na areia. Ele admira aquela beleza alva imersa novamente em outra beleza esverdeada. Uma nova onda aproxima um pouco mais aquela rosa dos seus pés, que passa a merecer uma atenção dividida com o mar.
Um ou outro espinho roça a pele provocando uma dor quase lúdica, nada grave, daquelas de brincadeira de criança.
Aquele contato de pele, físico, sensível nos poros, contraste entre flor e espinho, lhe aviva a presença dela.
Antes que conseguisse pegar-lhe firme na mão, uma nova onda de espuma varre a flor da areia depositando-a já distante dele.
Havia esquecido do mar, do céu, das cores. Só havia o branco. Das espumas, da rosa, dela.
Pensa em levantar-se e buscá-la, mas conta que talvez o mar pudesse trazê-la novamente para junto de si.
Uma fatalidade. Nesse tempo, uma esteira barulhenta recolhe a flor num golpe de fúria mecânica arremessando-a num imenso compartimento metálico, estraçalhada e parcialmente soterrada por um pouco de areia e água do mar. Era o fim.
Agora, aquela bela flor compartilha o ambiente comum àqueles que aguardam o seu triste fim, em decomposição.
Na metáfora das transformações do amor, experimentaram o mesmo destino. Ela por inércia, ele por deixar de pegar-lhe firme na mão.

quarta-feira, agosto 10, 2005

Tentando Aprender a Lavar Roupa

"Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar.
Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer."
Graciliano Ramos, em entrevista concedida em 1948
Salve Mestre!

terça-feira, agosto 09, 2005

Absolutismo

Agosto entrou absoluto. Lembrei de sua presença já no dia primeiro.
Agosto entrou com uma absoluta falta de tempo para escrever.
Absoluta falta de vontade de escrever.
Absoluta falta de inspiração para escrever.
Absoluta falta de graça para escrever.
Talvez dia quinze melhore. Nossa Senhora da Glória.
No sincretismo, Iemanjá. Dos mares, dos cabelos longos, da sedução. A grande mãe de todos os Orixás, da fartura de amor e matéria, nossa herança d’além do Atlântico.
Agosto entrou com Fullana Maria investida de poderes absolutos, sem limites, exercendo de fato e de direito os atributos da soberania.
Agosto, mês do desgosto. Não! Do oposto. Muito gosto. De Fullana. Saborosa.
É uma rainha. Do céu, do mar, da Glória. Quase santa.

quinta-feira, agosto 04, 2005

A Verdadeira Cor

Não tenho coragem de furar fila.
Tenho vergonha de fazer xixi na rua, questão de saúde pública.
Me esforço para não acelerar o carro quando alguém liga a seta e indica que vai ocupar um lugar à minha frente no engarrafamento.
Não tenho vontade de roubar e acho o roubo deplorável.
Torço para não achar nada na rua e experimentar a angústia de ter que devolver, por estar consciente de que isso é o correto e de que o meu achado pode estar fazendo muita falta a alguém que pensa como eu, ou mesmo que pense diferente.
Não persigo ambulâncias ou carros de bombeiros tentando chegar antes dos outros no trânsito.
Jogo na loteria e quero ganhar desde que por acaso ou sorte.
Não ultrapasso em acostamento quando o trânsito está engarrafado.
Não acredito em perfeição, já que tenho dificuldades em definir Deus de uma forma compreensível.
Penso que só a própria pessoa sabe definir sua dor.
Quanto ao amor, é indefinível, mas sensível em plenitude, mesmo que à distância.
Entendo que só a educação salva porque permite elaborações, associações, conclusões, concordâncias e discordâncias. Senso crítico.
Tento compreender as fraquezas humanas, sem compactuar com elas, mas somente após ter passado meu ódio que, felizmente, passa rápido.
Acho que o tempo cura tudo.
Pouca coisa é melhor que sexo, com quem desejamos.
Acredito que é possível o bem comum.
Armas poderiam ser banidas.
Minhas atitudes às vezes são desastrosas, mas corrigíveis.
Minhas declarações às vezes inconsistentes, mas devo tentar explicá-las.
Minha fé sofre vacilações, mas persiste depois que durmo.
Não fumo simplesmente porque fumar mata e não quero matar ninguém.
Não quero levar vantagem em tudo.
Acredito nas oportunidades iguais a todos, como bem disse Ordisi.
Essa é a verdadeira cor da minha bandeira, que pode estar tingida, sob qualquer matiz.
A cor fica a cada gosto.

terça-feira, agosto 02, 2005

Bandeiras

Minha primeira bandeira, lembro que era vermelha. Achei-a na lata de lixo do vizinho.
Levei-a para casa escondido embaixo da camisa, morrendo de medo de levar uma surra da minha mãe quando ela soubesse que eu andava bisbilhotando as latas de lixo. Curiosidade infantil.
Tinha um símbolo estranho pintado.
Eu era muito menino, mas lembro daquela bandeira vermelha que eu amarrava atrás da minha bicicleta num cabo de vassoura velho e saía pedalando, olhando para trás e vendo-a tremular ao vento. Fazia isso escondido porque não saberia dizer para minha mãe a origem da mesma e fatalmente pressentia a tal surra.
Mas como ela era bonita. Às vezes me servia de capa para eu ensaiar vôos magníficos e heróicos em defesa de sei lá o quê. Com ela eu também voava na minha santa ingenuidade.
A mesma bandeira vermelha servia para brincar de espantar moscas dentro de casa, na mais absoluta falta do que fazer e de brinquedos. Da mesma forma, servia para eu me fantasiar de diabo e assustar minha irmã em noites de falta de energia elétrica. Ela era uma parte da minha alegria.
Um dia minha mãe descobriu a bandeira.
- Menino, que bandeira é esta? Sacudiu na minha cara.
- Eu achei na rua e peguei para brincar. Argumentei com a voz embargada já sabendo o fim da estória.
- Você está querendo prejudicar o seu pai? Tá?
E tomei o inevitável tapa, que nem doeu. A dor maior foi ver minha mãe ateando fogo à minha bandeira vermelha que se consumiu rapidamente. As cinzas foram parar no lixo.
Somente muito tempo depois, já adolescente, compreendi o ato de minha mãe. Naquele ano de 1964, com a ditadura militar avançando, uma bandeira vermelha com um símbolo socialista, tremulando atrás de uma bicicleta, seria problema certo para toda a família.
Muitos anos depois, uma nova bandeira vermelha chegou às minhas mãos. Dessa vez, com uma estrela. Cheia de significados tal qual a primeira.
Sem a surra ameaçadora da minha pobre mãe a me assombrar, peguei-a. Coloquei-a na janela de casa. Levei-a tremulando pela cidade, ainda num velho cabo de vassoura.
Aquela bandeira era um depositório de esperanças. Esperanças tantas que nem daria para escrever, sob pena de esquecer das principais.
Mas, já não sou tão menino. Foram muitas histórias vividas e assistidas. Ingenuidade corrompida.
Minha mãe já não incendeia bandeiras nem me dá surras, mas a decepção pelo destino da minha segunda bandeira vermelha é a mesma.
Hoje, ao sair de casa, dobrei-a com cuidado e, sem ódio, abri o latão laranja de lixo e joguei-a lá dentro.
Nesse universo de angústia, decepção e realidade, fiquei imaginando que minha mãe, se pudesse, juntaria as cinzas da primeira bandeira e, num sopro mágico, daqueles que só as mães têm, a reconstituiria e me entregaria sugerindo:
- Continue lutando, meu filho. Trabalhe.
A rua estava cheia de crianças sorridentes. Caminhei alguns metros até o carro e antes de entrar resolvi voltar. Abri o latão e peguei a bandeira lá de dentro. A meninada ficou olhando sem entender porque aquele homem de terno estava remexendo o lixo.
Quis evitar apenas que algum menino curioso pudesse pegá-la para brincar, amarrando-a em uma velha bicicleta e viesse a levar uma surra de sua mãe, nesses tempos de vergonha.
A minha bandeira continuará sendo a vermelha.
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