terça-feira, agosto 02, 2005

Bandeiras

Minha primeira bandeira, lembro que era vermelha. Achei-a na lata de lixo do vizinho.
Levei-a para casa escondido embaixo da camisa, morrendo de medo de levar uma surra da minha mãe quando ela soubesse que eu andava bisbilhotando as latas de lixo. Curiosidade infantil.
Tinha um símbolo estranho pintado.
Eu era muito menino, mas lembro daquela bandeira vermelha que eu amarrava atrás da minha bicicleta num cabo de vassoura velho e saía pedalando, olhando para trás e vendo-a tremular ao vento. Fazia isso escondido porque não saberia dizer para minha mãe a origem da mesma e fatalmente pressentia a tal surra.
Mas como ela era bonita. Às vezes me servia de capa para eu ensaiar vôos magníficos e heróicos em defesa de sei lá o quê. Com ela eu também voava na minha santa ingenuidade.
A mesma bandeira vermelha servia para brincar de espantar moscas dentro de casa, na mais absoluta falta do que fazer e de brinquedos. Da mesma forma, servia para eu me fantasiar de diabo e assustar minha irmã em noites de falta de energia elétrica. Ela era uma parte da minha alegria.
Um dia minha mãe descobriu a bandeira.
- Menino, que bandeira é esta? Sacudiu na minha cara.
- Eu achei na rua e peguei para brincar. Argumentei com a voz embargada já sabendo o fim da estória.
- Você está querendo prejudicar o seu pai? Tá?
E tomei o inevitável tapa, que nem doeu. A dor maior foi ver minha mãe ateando fogo à minha bandeira vermelha que se consumiu rapidamente. As cinzas foram parar no lixo.
Somente muito tempo depois, já adolescente, compreendi o ato de minha mãe. Naquele ano de 1964, com a ditadura militar avançando, uma bandeira vermelha com um símbolo socialista, tremulando atrás de uma bicicleta, seria problema certo para toda a família.
Muitos anos depois, uma nova bandeira vermelha chegou às minhas mãos. Dessa vez, com uma estrela. Cheia de significados tal qual a primeira.
Sem a surra ameaçadora da minha pobre mãe a me assombrar, peguei-a. Coloquei-a na janela de casa. Levei-a tremulando pela cidade, ainda num velho cabo de vassoura.
Aquela bandeira era um depositório de esperanças. Esperanças tantas que nem daria para escrever, sob pena de esquecer das principais.
Mas, já não sou tão menino. Foram muitas histórias vividas e assistidas. Ingenuidade corrompida.
Minha mãe já não incendeia bandeiras nem me dá surras, mas a decepção pelo destino da minha segunda bandeira vermelha é a mesma.
Hoje, ao sair de casa, dobrei-a com cuidado e, sem ódio, abri o latão laranja de lixo e joguei-a lá dentro.
Nesse universo de angústia, decepção e realidade, fiquei imaginando que minha mãe, se pudesse, juntaria as cinzas da primeira bandeira e, num sopro mágico, daqueles que só as mães têm, a reconstituiria e me entregaria sugerindo:
- Continue lutando, meu filho. Trabalhe.
A rua estava cheia de crianças sorridentes. Caminhei alguns metros até o carro e antes de entrar resolvi voltar. Abri o latão e peguei a bandeira lá de dentro. A meninada ficou olhando sem entender porque aquele homem de terno estava remexendo o lixo.
Quis evitar apenas que algum menino curioso pudesse pegá-la para brincar, amarrando-a em uma velha bicicleta e viesse a levar uma surra de sua mãe, nesses tempos de vergonha.
A minha bandeira continuará sendo a vermelha.
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