quinta-feira, julho 14, 2005

Eu e Fullana - I

No telefone, ouço a voz de Fullana indignada:
- Você sabe que não gosto de televisão, não sabe?
- Nem de novela?
- Deteeeeeesto novela. Mas não muda de assunto, Zé. Ontem, resolvi assistir ao Jornal Nacional.
- Tá sem programa? Podemos sair. Insinuei.
- Já te disse que só podemos ser amigos. Tenho um pressentimento ruim.
Fullana era enigmática, às vezes.
- Deixa eu contar a minha história? Irritou-se.
Calei-me e preferi ouvir o que tinha a dizer.
Na gostava de telejornais. Achava que não acrescentavam nada e eram mensageiros do sadismo.
Mas ontem, enquanto lixava as belas unhas preparando-as para a pintura, ficou atenta à televisão, no telejornal das oito da noite.
A primeira reportagem foi sobre corrupção no governo. Demorou uns cinco minutos e já emendou em outra, sob corrupção também. A terceira foi igualmente sobre corrupção.
Fullana levantou-se e pegou um caderninho para anotar. Disse que resolveu fazer uma estatística dos temas apresentados no tal telejornal nacional.
Atenta e criteriosa para não falhar em alguma classificação registrou oito reportagens sobre corrupção, três sobre tragédias diversas, uma sobre crime ambiental, outra sobre cambio negro com ingressos para o futebol, que lhe rendeu alguma dúvida quanto à classificação. Prática como sempre, já impaciente, registrou como crime.
Para aliviar, entrou a previsão do tempo. Relaxou um pouco quando chamou a bela menina do tempo de galinha. Tinha motivos. Com um sorriso que as aves não possuem, a bela anunciava uma frente fria com temporal para o fim de semana. Fullana, que gostava de combinar a cor das unhas com suas intenções, mudou de esmalte. Chamou a bela da TV de galinha novamente, na despedida, com um sorriso malicioso no canto da boca.
Registrou ainda uma última notícia esportiva.
Na exibição da vinheta de encerramento, apurou os seus registros. Foram quinze reportagens, todas de fazer chorar. Nenhuma sobre artes, nem educação, nem nada de bom. Ficou a impressão de que não existia nada de bom neste país.
- Ai, Zé! Me senti uma porcaria, num país de porcaria. Tô com vontade de esganar toda essa mediocridade.
- Só posso te dizer uma coisa, vou escrever sobre isso. Posso?
Fullana sorriu e mudou o tom da voz.
- Pode. Mas com uma exigência....
- Qual?
- Diz que eu chamei aquela horrorosa de galinha. Um beijo.
Desligou às gargalhadas. Foi à geladeira, tomou um copo de leite. Soltou os cabelos e deitou em seu travesseiro de plumas de pato para seu sono de rainha.
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