terça-feira, junho 14, 2005

Sentimento Cívico (*)

Não conseguia esconder a expectativa quando sentou diante da TV. Ao mesmo tempo experimentava um certo alivio, afinal, após grande tempo de indecisão, sentia que naquele momento iria definir o seu voto.
Era um dia daqueles debates políticos entre candidatos transmitido pela TV, um momento antológico, na opinião de Arturzão. Apesar de divertir-se com os candidatos se engalfinhando, não declarava isso, preferia manter a cínica postura cívica de quem vai decidir o destino da cidade com seu voto.
No seu ritual democrático, colocou a cerveja gelada ao lado do sofá, acomodou o cachorro junto de si e sentiu um calafrio quando ouviu a vinheta de abertura do programa.
Estavam lá os cinco candidatos. Mas estranhou a falta de dois. Sabia que eram sete os candidatos a prefeito. Tentou identificar os ausentes. Só constatou a falta de um. Um tal que falava em não votar em burguês. Nunca tinha visto o candidato e isso fazia uma confusão na cabeça de Arturzão. Mas isso não importava muito, o maior problema para Arturzão era não saber o que era burguês. Não dizia isso a ninguém, por vergonha. Pensava sempre em algum tipo de salame ou sanduíche. Ficou meio decepcionado com a ausência do candidato. Achava que iria conhecê-lo e finalmente entender o que era “ser burguês”. Deu de ombros, não ia votar nele mesmo.
Nas suas saborosas goladas de cerveja, vai apreciando o desenrolar das perguntas. Se esforça, mas não consegue entender muito bem as respostas. Sempre achava que os políticos tinham uma habilidade em responder sem responder. Já tentara fazer isso nos tempos de escola mas sempre se dera mal. Era zero na certa. Como isso podia dar certo para eles? Pensava. Mas dava. Eles continuavam os mesmos, não respondiam nada, e se ofendiam muito.
Começou a ficar divertido.
O atual prefeito chama o ex-prefeito de ladrão. Isso mesmo, ladrão. O outro reage e chama o atual de mentiroso e ladrão também. E ficam nisso. Vermelhos parecendo dois tomates. Arturzão ainda ficou na duvida se era de raiva ou de vergonha. Era um ingênuo.
Continuava atento, mas já não tinha a mesma esperança.
Arturzão se contorce de rir quando um candidato se refere ao corte de cabelo da única candidata do sexo feminino, numa tentativa de ridicularizá-la. Que importância tinha isso para a cidade? Pensou. Nenhuma, mas era engraçado.
Enquanto se divertia aumentava a angústia. Começou a só ver os defeitos. Um tinha cara de cachorro a outra, cabelo de cachorro. Que horror!
Um era bispo, mas de santo não tinha nada. Tinha cara de oportunista.
Lembrava da sogra, uma crente de carteirinha que conhecia toda a bíblia decorada e usava saias até os tornozelos. A crente fazia questão de tornar público que não votaria no bispo porque ele precisava decidir se queria ser bispo ou político. Para essa velha dizer isso de um irmão dela, esse não devia ser flor que se cheirasse, pensava.
Continua em sua cervejinha e ao final da terceira garrafa Arturzão inevitavelmente adormece junto ao cachorro, já no tapete da sala. Quando acorda o programa já terminou. Arrasta-se para a cama com um sentimento estranho, uma situação não resolvida.
Passa os poucos dias até a eleição matutando sobre o que fazer. A angústia se transforma numa tristeza enorme. Queria se sentir realmente um brasileiro, escolhendo o governante da sua cidade.
No dia da votação, diante da urna eletrônica, Arturzão chora feito criança, com saudades do tempo da votação em cédula de papel, onde poderia, numa hora dessas, manifestar sua brasilidade descontente escrevendo um sonoro palavrão.

(*) Nesses tempos de Roberto Jefferson e outras quadrilhas.
eXTReMe Tracker