quarta-feira, maio 25, 2005

Benditos os Malditos

“ Eu não tenho uma personalidade; eu sou um coquetel, um conglomerado, uma manifestação de personalidades.
Em mim, a personalidade é uma espécie de furunculose anímica em estado crônico de erupção; não passa meia hora sem que nasça uma nova personalidade.
Desde que estou comigo mesmo, é tal a aglomeração das que me rodeiam, que minha casa parece um consultório de uma quiromante de moda. Há personalidades em todas as partes: no vestíbulo, no corredor, na cozinha, até na privada.
Impossível ter um momento de trégua, de descanso! Impossível saber qual é a verdadeira!
Embora me veja forçado a conviver na promiscuidade mais absoluta com todas elas, não me convenço de que me pertençam.
Que tipo de contato podem comigo – pergunto-me – todas essas personalidades
inconfessáveis, que fariam ruborizar a um carniceiro? Deveria permitir que se me
identifique, por exemplo, com este pederasta murcho que não teve nem a coragem de se realizar, ou com este cretinóide cujo sorriso é capaz de congelar uma locomotiva?
O fato de que se hospedem no meu corpo é suficiente, no entanto, para enfermar-me de indignação. Já que não posso ignorar sua existência, quisera obrigá-las a que se ocultem nas pregas mais recônditas de meu cérebro. Mas são de uma petulância... de um egoísmo... de uma falta de tato...
Até as personalidades mais insignificantes se dão uns ares de transatlântico. Todas, sem nenhuma espécie de exceção, se julgam com direito a manifestar um desprezo olímpico pelas outras e, naturalmente, há brigas, conflitos de todo tipo, discussões que nunca terminam. Em vez de confraternizar, já que têm que viver juntas, pois não, senhor!, cada uma pretende impor sua vontade, sem tomar em conta as opiniões e os gostos das outras. Se alguma tem uma ocorrência que leve às gargalhadas, no mesmo instante sai qualquer outra, propondo-me um passeio ao cemitério. Nem bem aquela deseja que me deite com todas as mulheres da cidade, esta se empenha em demonstrar-me as vantagens da abstinência, e enquanto uma abusa da noite e não me deixa dormir até de madrugada, a outra me desperta com o amanhecer e exige que me levante junto com as galinhas.
Minha vida resulta assim uma prenhez de possibilidades que nunca se realizam, uma explosão de forças encontradas que se entrechocam e se destroem mutuamente. O fato de tomar a menor determinação me exige um cúmulo tal de dificuldades, antes de cometer o ato mais insignificante necessito por tantas personalidades de comum acordo, que prefiro renunciar a qualquer coisa e esperar que se extenuem discutindo o que vão fazer comigo, para ter, pelo menos, a satisfação de mandá-las todas juntas à merda. “ (*)

Invejo esse texto, escrito em 1932 e sempre atual porque humano.
É um daqueles que gostaria de ter escrito. Sem falsos pudores.
Benditos os malditos, vanguardistas. Só eles podem abalar o império da mediocridade.
Baudelaire, Rimbaud.
Bendito seja Oliverio Girondo.

(*) De Espantapájaros. (1932)
Oliverio Girondo
eXTReMe Tracker