quarta-feira, junho 01, 2005

Devolva, meu amor!

Pulou o muro do cemitério e saiu correndo. Atravessou a rua suando frio sem saber ao certo a quem temer. Achava que temia a tudo, era um temor generalizado.
A terra ainda insistia em correr entre os dedos. Que desperdício, pensava. Material tão nobre caindo ali pela rua. E os carros passavam por cima.
Correu uns vinte minutos e nem sentiu o tempo passar.
Chegou em casa a pé. Preferiu assim.
Os dedos da mão já doíam de tanto tempo fechados. Mas valeu à pena., lá estava a terra verdadeiramente prometida. Prometida para Mãe Isaurinha do Cruzeiro.
Aquela terra tirada do fundo do cemitério, à noite, ainda úmida, era tudo que precisava para conseguir o que queria.
Tinha conhecido Mãe Isaurinha através de um papel impresso que um menino alto, magricelo e desdentado insistiu em lhe entregar. Nunca aceitava esses papéis entregues em esquinas e sinais de trânsito, mas naquele dia ouviu um chamado. Coisa do destino. Era um místico.
Já não suportava mais a falta que Fullana Maria lhe fazia e buscava solução.
Confiava na macumba prometida por Mãe Isaurinha. Fascinação.
Macumba com terra de cemitério era tiro e queda, era certo.
Em casa, depositou a terra sobre uma folha de papel e deixou-a sobre a cômoda.
Apagou a luz e deitou-se, ainda fascinado e ofegante, imaginando os momentos felizes que reviveria com Fullana. Nem percebeu que a mão ainda estava suja de terra.
Adorando à distância o pequeno monte, percebe um pequeno facho de luz irradiando em sua direção. Verde. Imagina tratar-se de algum grão cristalizado refletindo a pouca luminosidade da janela. Vira-se para o lado numa tentativa de dormir. A mente efervescente não permite. Aquela luz verde parecia ter invadido seu cérebro pelas retinas. Misturava imagens de Fullana com luzes verdes num turbilhão alucinatório. Não suporta, levanta e vai verificar que reflexo era aquele.
Enfia o dedo na terra e constata:
- Um anel? Surpreende-se.
Meio enferrujado e com uma velha pedra verde. Arrepia-se, sua frio, tem crises de cólicas viscerais. Minutos que pareciam uma eternidade.
O que fazer? Não queria ficar com aquilo em casa. Vai que o dono quer de volta? Pensou arrependido. Nessas horas o controle escapa. Uma voz feminina lhe vinha à mente, como que a lhe soprar aos ouvidos:
- Devolva, meu amor! Insistia a voz macia. Macia até demais.
- Vou devolver isso agora. Decidiu.
Remexeu a terra no papel e encontra o pior, uma unha pintada de vermelho, desbotado já. Foi a gota d’água. Quase chorou.
Fechou o papel na mão e saiu de casa rumo ao cemitério. Correu mais vinte minutos que pareciam nunca passar. Olhou o muro que dessa vez parecia mais alto, difícil de pular. Puro cansaço e adrenalina.
Pulou assim mesmo, caiu do outro lado e quebrou um anjo cinzento com cara de desilusão. A mesma cara dele. Tateou no cemitério escuro sem lembrar onde colocar a terra de volta. Abaixa-se entre duas covas e abre o papel num ritual de pavor e destino. As pernas tremem enfraquecidas. Uma luz violenta brilha nos seus olhos, cega-o, era o fim. Grita por Mãe Isaurinha já em prantos e desmaia sobre o monte da mesma terra úmida, com o foco da lanterna em sua cara.
Acorda novamente com flashes de luz, ainda atordoado.
Um homem sério de farda apressa-se em esclarecer:
- Meu amigo, acordou? O Sr. vai ter que se explicar, artigo 210 do Código Penal, profanação de sepultura. Entendeu?
Mesmo atordoado, achou melhor assim e acabou contando seu drama para o delegado que foi solidário. Eram homens que amavam.
No dia seguinte, Fullana Maria ficou triste ao vê-lo na primeira página de um jornal popular sob a manchete: “MACUMBEIRO DO AMOR ACABA NA CADEIA”. Não era bem esse o sucesso planejado mas ela sentiu-se amada, isso ela sentiu.
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