quinta-feira, setembro 30, 2004

Estranha Felicidade

Odorico cutucou o escritor e mandou a pergunta:
- Me diga, como é que você faz para escrever?
- Pego a caneta e escrevo. Saio escrevendo. Respondeu o paciente e meio aéreo escritor.
- Não é isso, quero saber de onde vêm as idéias.
Odorico tinha um certo ar acadêmico. Simples, cruzava as pernas como as mulheres elegantes, mas escorregava numa velha mania suburbana de palitar os dentes. Era questionador e ferino. Parecia sempre buscar algo com o olhar calmo. Nunca encontrava. Não se sabe se o escritor era paciente ou ausente, como se vivesse em um outro mundo. Mesmo assim, cuidava para não deixar Odorico sem resposta.
- As idéias? Vêm de muitos lugares. Das lembranças de coisas que já vivi, do que me contaram, fatos que testemunhei e coisas que invento ou que são sopradas pelo invisível. Sabia que às vezes os textos saem assim? Rapidamente e do nada.
- Êpa! Agora arrepiei. Sacudiu-se Odorico. E tentou definir:
- Você é daqueles homens que os ocultos falam através de você? Dizendo coisas que não é você que está falando mas sim eles?
- Não Odorico, isso é coisa de fofoqueiro. Brincou o escritor.
- Não tente me enrolar, não. Agora já sei, você é um medium.
- O que é isso? Aterrizou o escritor.
E Odorico, com seu ar acadêmico, partiu para a explicação.
- Médium é o sujeito que fala pelos que não podem mais falar. Os que já foram dessa para uma melhor, entende? E isso vale para quem escreve também. E quer saber? O que você escreve não tem valor nenhum, vem do oculto. És um impostor.
Pobre escritor. Ficou meio atordoado e quase convencido. Será mesmo que nada do que escrevia tinha valor? De onde vinham tantas idéias? Toca o telefone.
- Seu cachorro. Quem é essa aí do conto de hoje? Não sou eu. Você nunca me disse isso? Quem é essa vagabunda? Seu miserável!
Outra paulada. Talvez Odorico tivesse razão, numa emergência, melhor culpar o além.
- Sei lá amorzinho. Isso é coisa do oculto. Sabia que eu sou médium? Perguntou sem muita convicção.
Ela bate com o telefone na cara dele. Chegou a doer. Odorico testemunha a cena e até concorda com o amigo, mas prefere não se envolver. Retira-se meio decepcionado.
Com os pensamentos embaralhados, o escritor pega o jornal de Domingo onde lê “ os escritores são assim mesmo, têm alucinações, ouvem vozes. Sofrem de uma espécie de esquizofrenia, quase sempre benigna”(*). Relaxa sorridente, com o consolo de outra escritora.
Entre médium, farsante ou cafajeste, conforta-se em padecer dessa feliz enfermidade esquizofrênica.

(*) O texto transcrito foi retirado da coluna Contos Mínimos, de Heloisa Seixas, Revista de Domingo do JB, edição de 05/9/2004.
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