quarta-feira, outubro 27, 2004

Princesas e Plebeus

Se havia uma coisa com a qual ela sonhava, era com príncipes. Daqueles maravilhosos, altos , fortes, gentis, com voz aveludada e mãos macias.
Sim, os príncipes tinham mãos macias. Nos filmes, sempre os via tirando as luvas ao descer dos cavalos ou ao guardar a espada. Imaginava-os sempre com aquelas mãos macias e grandes, prontas para os carinhos.
Os príncipes eram educados, incapazes de uma atitude grosseira e, é claro, sempre era ela a princesa.
Nos sonhos de Gininha, sempre se imaginava entregue àquelas mãos perfumadas que lhe acariciavam. Os príncipes eram os mais belos do reino, sonhava, mesmo acordada.
Gininha era uma bela menina. Com o frescor adolescente na pele morena, despertava o interesse de muitos rapazes. Mas, na sua realidade, o real papel estava reservado a Buzuca, o mais belo rapaz da escola. Não havia mais bonito. Na falta de outros requisitos, ele era o príncipe.
No fundo sentia um certo incômodo pelo nome do seu escolhido. Na verdade, nem sabia seu nome.
Buzuca? Pensava, parecia nome de cachorro. O apelido era tudo que sabia do seu príncipe, naquela paixão à distância.
Já Buzuca, nem imaginava que poderia ser coroado. Olhava com um certo interesse para ela, igualmente à distância. Mas histórias de príncipes e princesas só conhecia superficialmente e estavam muito distante de sua realidade. Só pensava em futebol e em namorar todas as meninas do planeta.
Numa tarde, tomada de coragem, confabula com amigas e consegue que uma, mais atirada, seja a intermediária entre seus sonhos e seu príncipe. Resolve investir na sua paixão.
Após algumas trocas de recados, resolvem marcar um encontro.
No dia especial, lá está Gininha vestindo-se diante do espelho. Escova os negros e longos cabelos, de princesa. Já se vê nos braços confortáveis e carinhosos de Buzuca, num beijo cinematográfico.
Sai de casa em passos rápidos, dominada pela ansiedade juvenil. Chega ao portão da escola e avista seu príncipe, no alto da ladeira que a conduziria dali até o prédio do estabelecimento, o local do encontro.
Ele a vê e se apressa em vir na sua direção. Que gentil, pensou ela, também caminhando ao encontro do rapaz.
Buzuca começa e esboçar um sorriso, já imaginando os comentários invejosos dos amigos que tanto desejavam aquela morena como namorada.
Caminhando na direção daquele encontro, num ato impensado, quase reflexo, que poderia até passar despercebido, cospe para o lado e coça a região escrotal. Uma coçada quase esportiva, despretensiosa, totalmente deselegante. É, ele tinha dessas manias.
Gininha instantaneamente para, estática. Um frio glacial lhe percorre todo o corpo. As náuseas são inevitáveis. O asco lhe toma junto com a decepção. Naquele momento Buzuca perdera o encanto. Era um plebeu.
Gininha vira as costas e parte numa corrida desenfreada, louca para chegar em casa e desabar em choro no travesseiro cor de rosa. Fica lá horas, em prantos, testemunhados pelo sapo de louça à cabeceira.
Buzuca ficou lá, parado, sem entender nada.
Realmente, ele não entendia nada de princesas.

terça-feira, outubro 26, 2004

Carismático

Namoravam.
Jurandir era um homem elegante, carinhoso. Fino no trato.
Falante e bem articulado sabia colocar as palavras nos lugares e momentos certos. Os piores palavrões assumiam sonoridade clássica, marcante. Era um estrategista e conhecedor da linguagem. Sabia usar a palavra tanto nos discursos inflamados quanto nos mais íntimos momentos de amor. As palavras fazem parte de um universo particular, gabava-se.
Amava Dorotéia. Uma doce e suave mulher, de pés e mãos igualmente suaves e decotes sempre generosos.
Naquela mulher se destacava o belo rosto, tenro e juvenil, e uma linda boca que sempre envolvia Jurandir na mais profunda sedução. A beleza daqueles lábios desequilibravam o enamorado parceiro lhe causando uma eterna dúvida quanto a ser dominado pela sua beleza ou pelas lembranças dos prazeres proporcionados. Às vezes se via solitariamente sorridente, acometido pela feliz dúvida.
Entregavam-se ao amor, em tépidas tardes. Numa dessas, lá estavam os amantes em trocas de carícias muito íntimas. Dorotéia, totalmente entregue, gemia o nome do amado, numa sensação de prazer nunca experimentada, única. Jurandir lá, atuante, com uma convicção inabalável quanto à sua condição máscula. Chegam ao clímax com ele sentindo-se o próprio amante latino.
Após o amor, observam-se mutuamente numa troca de afagos. Dorotéia observa o corpo nu do amado quase hipnotizada. Contempla em especial o falo do parceiro e seus olhos brilham como num encantamento. Jurandir tenta capitalizar:
- Gostou? O que você tanto admira?
Dorotéia, com uma simplicidade objetiva:
- É tão..... tão......, carismático.
Jurandir sorri meio amarelo buscando um sinônimo. Logo ele, tão articulado com as palavras, não conseguia entender a simplicidade dela.
- Carismático? Como assim?
- É, carismático. Carismático e Flexível. Dorotéia se desmancha num doce elogio.
Carismático era difícil de entender, mas flexível lhe soou com uma bomba. Naquela tarde viu sua convicção abalada. Sem a compreensão do universo de Dorotéia, passou o resto dos seus dias na dúvida quanto ao significado daquelas palavras.

sexta-feira, outubro 22, 2004

Sempre às Sextas:

Recôndita Nudez
Margarida - Idéias em Desalinho

Há no teu corpo,

num halo que me incendeia,

uma luz que se insinua

e vem ao meu encontro,

aqui, onde me sabes sempre nua.


sexta-feira, outubro 15, 2004

Sempre às Sextas: Taxista

de José Paulo Antunes

Enquanto a voz de Cartola, saindo do radinho de pilha, confortava a noite chuvosa do taxista Josué, ele buscava por passageiros em ruas do subúrbio do Rio. Tarefa nada fácil quando seus vidros estão embaçados pela chuva e os bracinhos modestos de passageiros em potencial se escondem embaixo de marquises para não se molhar.
Na rua desde às 7 da manhã, naquela altura do campeonato, Josué já esquecera um pouco da profissão. "Passeava" pelas ruas, pensando - na morte da bezerra?! - e idealizando a sua caminha quente e aconchegante... zzZZZzzz... Acorda!
Era nessa hora que ele pensava na "patroa", e seus 3 filhos, esperando por ele. Ela, queria uma bolsa nova, o mais velho, precisava de livros pra faculdade. Enfim, precisava fazer dinheiro.
E lá iam seus olhos de lince, buscando polegares desesperados por transporte "sequinho".
"Que dia é hoje?! Segunda-feira?! Engraçado... Tem pouco movimento. Será que é feriado?! Dia de algum santo?! Ah, mas santo no Rio, só São Sebastião. Nome engraçado, Sebastião... zzZZZzzz..." Acorda!
"Ô Josué?! Que está havendo contigo hoje?! Nem bebeu e tá nessa preguiça toda. Nem parece macho pô! Só por causa desse friozinho, você fica aí pensando em café, cama, cobert... zzZZZzzz..." Bruuummm!!!
E lá se foi o táxi de Josué, adentrando os tapumes - de uma obra de rua - que entraram em seu caminho.

sexta-feira, outubro 08, 2004

Sempre às Sextas apresentra:

Com os amigos alfabetizados que ainda lêem (nesse triste país onde existem aqueles que não sabem ler e outros que não querem ler), quero dividir uma agradável descoberta.
No imenso mundo novo chamado internet encontra-se de tudo. Vendedores, compradores, divulgadores, falsos ou péssimos pudores, uns desocupados e outros muito ocupados.
Nesse universo selvagem, constatei a existência de muitos inteligentes e talentosos escritores que, num aparente contra-senso, me inibem e estimulam a continuar escrevendo.
Assim, às sextas-feiras, vou reservar um espaço para publicar textos desses outros escritores.
É surpreendente como tem gente boa.
Sempre às sextas.


Sobre Ciência e Sapiência
Rubens Alves

Muitas pessoas não gostam do que escrevo. Dizem que o que eu faço não é ciência, é literatura. É verdade. Faz tempo que me mudei da caixa de ferramentas para a caixa de brinquedos. O que me aborrece é que esses que não gostam do que escrevo pensam que somente a ciência tem dignidade acadêmica. Houve mesmo o caso de uma candidata a mestrado que teve seu projeto recusado por me citar demais e por propor um assunto que não era científico. Psicóloga e pedagoga, ela sabia por experiência própria do poder do olhar.

Há tantos olhares diferentes! Há olhar de desprezo, de admiração, de ternura, de ódio, de vergonha, de alegria... A mãe encosta o filhinho na parede e, a um metro de distância, lhe estende os braços e diz sorrindo: "Vem". Encorajada pelo olhar, a criança, que ainda não sabe andar, dá seus primeiros passos. Há olhares que dão coragem. E há olhares que destroem. Por exemplo, aquele olhar terrível da professora que encara a criança de um certo jeito, sem nada dizer. Mas a criança entende o que o seu olhar está dizendo: "Como você é burra...".

Há olhares que emburrecem. Voltando à metáfora do pênis, há olhares que o tornam impotente, tanto no sentido literal como no sentido metafórico. Acho que era isso que a Adélia Prado tinha em mente quando escreveu maliciosamente: "E o meu lábio zombeteiro faz a lança dele refluir".

O olhar é real. É real porque produz efeitos reais. O olho é também real. Sobre ele, pode-se ter conhecimento científico. Há uma ciência dos olhos. Há uma especialidade médica que se dedica a eles: a oftalmologia. Mas, por mais que procuremos nos tratados de oftalmologia referências ao olhar, não encontraremos nada. O olhar não é objeto de conhecimento científico. Nem tudo o que é real pode ser pescado com as redes metodológicas da ciência. Há objetos que escapam pelos buracos de suas malhas.

Será possível fazer uma ciência dos olhares? Tratá-los estatisticamente? Não tem jeito. Aí a proposta de uma tese sobre o olhar foi rejeitada sob a justa alegação de que não era científica. E não era mesmo. Mas o fato é que os olhares são reais! O estudo dos olhos é tarefa da ciência. E por isso eu sou agradecido. Neste momento, estou usando óculos para escrever. Sem eles, eu só veria borrões. Mas eu me dedico ao olhar, para que meus olhos sejam sábios. O olhar é uma música que os olhos tocam. Coisa de poeta...

São os poetas que falam sobre os olhares. (Eu escrevi "São os poetas que sabem sobre os olhares", mas logo corrigi. Todo mundo sabe sobre os olhares. Todo mundo observa atentamente os olhares, porque são eles, e não os globos oculares, que sinalizam a vida e, especialmente, o amor. Mas só os poetas sabem falar sobre eles.) Escrevo para mudar olhares. Isso não é ciência. É arte.

Há olhos perfeitos que são armas mortíferas. Jesus se referiu a esses olhos e sugeriu que deveriam ser arrancados. Os olhos, eles mesmos, são estúpidos. Eles não têm o poder para discriminar as coisas dignas de serem vistas das coisas não-dignas de serem vistas. Para eles, tanto faz ver um programa idiota de televisão ou uma tela de Johannes Vermeer. A capacidade de discriminar não pertence aos olhos. Pertence ao olhar. Mas isso exige uma luz interior.

Se os olhos não serviram como metáforas, falarei sobre pianos. Mais precisamente, sobre os pianos Steinway, os mais perfeitos, que estão nas grandes salas de concerto do mundo. Os pianos Steinway são produzidos de forma absolutamente rigorosa e científica. Tudo neles tem de ter a medida exata. Todos têm de ser absolutamente iguais, para que o pianista não estranhe. Mas um piano, em si mesmo, é estúpido. Falta-lhes o poder de discriminação. Os pianos obedecem tanto ao toque de um macaco, de um louco ou do Nelson Freire. Os pianos não são fins em si mesmos. São ferramentas. São construídos para tornar possível a beleza da música.

Mas a beleza não é um objeto de conhecimento científico. Ninguém pode ser convencido a gostar de Bach por meio de raciocínios científicos. E não me consta que algum dos especialistas em construção de pianos da fábrica Steinway jamais tenha dado um concerto. Ciência eles têm. Mas falta-lhes a arte. Para que o piano produza beleza, há os pianistas. Mas os pianistas nada sabem sobre a ciência da construção dos pianos. O que eles sabem é tocar piano, coisa que não é científica... Os fabricantes de piano moram na caixa de ferramentas. Os pianistas, na caixa de brinquedos.

A diferença está entre "ciência" e "sapiência". Os teólogos medievais diziam que a ciência era uma serva da teologia. Parodiando, eu digo que a ciência é uma serva da sapiência. A ciência é fogo que aumenta o poder dos homens sobre o mundo. A sapiência usa o fogo da ciência para transformar o mundo em comida, objeto de deleite. Sábio é aquele que degusta. Mas, se o cozinheiro só conhecer os saberes que moram na caixa de ferramentas, é possível que o excesso de fogo queime a comida e, eventualmente, o próprio cozinheiro...

Rubem Alves - Folha (sinapse) - 28/09/2004
Texto do blog registrosmeus

sexta-feira, outubro 01, 2004

A bela é a fera

Era uma mulher fina e elegante. Usava sandálias de saltos altos que sempre deixavam à mostra seus belos e delicados pés. Pezinhos daqueles que dão vontade de beijar eternamente. Pés de menina, apesar de madura.
Não andava, desfilava. Nada intencional, era na maior naturalidade.
Os vestidos de seda, sempre generosos nos decotes, escondiam com uma certa displicência o corpo bem cuidado que só as mulheres de classe possuem. Aquelas belas das colunas sociais.
Transparecia uma elegância imperial. Coisa de nobreza que só aqueles que acreditam na reencarnação saberiam explicar.
Era uma mulher, e se existem características que são marcantes nas mulheres, uma é o talento para bons negócios.
Adentrou o supermercado proporcionando momentos de raro prazer aos carregadores, vigilantes, supervisores de caixa e outros funcionários do sexo masculino. Seu perfume, atrevidíssimo, buscava os admiradores já paralisados com a sua presença e provocava uma certa inveja nas mulheres, outra característica marcante nelas. Mas nem se apercebia disso.
Era uma mulher comum e estava ali para o comum papel de buscar suprimento para a família. No seu displicente caminhar ouve o aviso de uma promoção relâmpago. Morangos a setenta centavos a caixa. Com o dinheiro escasso, seu talento para os bons negócios se aguçara. Baratíssimo, pensou. Instintivamente correu para a banca dos morangos.
Tal qual ela, porém, muitas outras correram, inclusive as invejosas da portaria, afinal, eram morangos a apenas setenta centavos. Um bom negócio. E lá se foi, correndo, aquela perfumada dama.
Diante da banca de morangos, o instinto falou mais forte. A reencarnação foi subjugada. Lutava com suas semelhantes pelas caixas de morangos mas experimentou a força da maioria. Aquelas descabeladas com camisetas de políticos, pés encardidos e cheirando a cebolas perceberam que havia uma estranha no ninho, a dama perfumada, e se empenharam nos empurrões. Mas aquela bela mulher, sentindo-se ameaçada de não conseguir seus morangos a setenta centavos, resolveu partir para a briga e literalmente perdeu a linha. Empurrou, cutucou, estapeou e xingou. Por momentos achou que rosnava para uma gorda que fazia uma barreira impedindo-a de chegar aos tão desejados morangos.
Chega em casa triunfal com três caixas da saborosa fruta. Decidida, toma um banho morno, prepara um prato de morangos com chantilly e se aconchega em seus lençóis de cetim para saboreá-los.
Na apuração dos resultados do negócio, lucrou um Real e vinte centavos. Entre as perdas em combate, um salto quebrado e uma mancha da fruta no vestido de seda.
Prejuízo? Claro que não. A auto-estima nunca estivera tão bem diante da vitória sobre as invejosas.
Sem perceber, adormeceu como um anjo, com os lábios avermelhados e doces.
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