terça-feira, janeiro 24, 2006

Encantamento

Atravessou a rua constrangido. Àquela hora do dia e vestido em passeio completo sentia-se um peixe fora d’água naquelas ruas de Madureira. Já lhe haviam pedido dinheiro cinco vezes, chamado de doutor umas dez, sempre acompanhado de ofertas diversas. Água, cerveja, pulseiras, frutas e até um xistudo por apenas “dois conto”, incluindo um refresco. Coisas de pequenos empresários suburbanos, tentou contemporizar.
O que mais incomodava era aquele pacote embaixo do braço. Embrulhado em jornal, o bicho cacarejava a cada solavanco maior. A aflição, estampada nos olhos daquele galo vermelho, não era diferente daquela expressa nos olhos dele.
Chegou ao terreiro de Mãe Geni suado. O paletó do terno bem cortado cheirava a jornal velho e galo. Imprestável. A mãe de santo já aguardava paramentada numa roupa branquíssima e colares coloridos. Salve, meu filho! Saudou-o. Ele sorriu, beijou-lhe a mão em reverência, colocou o pacote com o galo no chão e tirou imediatamente o paletó. Percebeu que um Armani e cheiro de galo proporcionam uma mistura nada agradável.
Solte o bicho do jornal e segure ele para não fugir, pediu a mãe.
Não demorou muito para ouvir o adjá. Mãe Geni saiu do terreiro para o quintal e ele acompanhou-a. Sentaram-se cada um num banco já reservados e arrumados em torno de um pano branco e fitas vermelhas. A mãe-de-santo pronunciou orações incompreensíveis para um não africano, pegou o galo e deitou-o no chão. Prendeu as asas com seus delicados pés ao tempo em que desembainhou uma faca brilhante. Apontou a faca olhando-o profundamente e determinou:
- Faz seus pedidos, meu filho.
Segurou a cabeça da ave e passou-lhe o aço no pescoço. Foi rápido. Deixou o sangue correr sobre o prato de barro já preparado. Cortou as asas e outras partes, arrumando-as cuidadosamente como se estivesse preparando a refeição de alguém muito querido.
- Como é o nome da moça?
- Fullana, mãe. Fullana Maria.
- Pensa nela, meu filho.
Talvez nem os orixás tenham percebido, mas só pensava nela há tempos.
Mãe Geni concluiu a oferenda com uma observação curiosa.
- É, moço, já existe encantamento...
E sorriu com alegria reafirmando que sempre era bom agradar aos orixás.
Ele, ficou com a impressão da inutilidade do encantamento. Soube que Fullana andara pelas bandas da Bahia e imaginou-a com o corpo fechado.
Bobagens. Antes do galo já estavam encantados. Pelas mãos, pelos carinhos, pelas vozes, pelo destino.
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