quarta-feira, julho 27, 2005

A Pedido

Parecia alucinação. Andava pelos cantos, com um humor péssimo.
No início, ouvia vozes e percebia vultos. Vultos femininos, graças a Deus, mas vultos sempre incomodam.
Com o tempo escasseando cada vez mais, me empenhei no trabalho com a habilidade de um malabarista de sinal.
Vinha acumulando horas de trabalho consecutivas, chegando à marca de vinte horas por dia. E foram vários dias. Centenas de ligações, dezenas de reuniões, cálculos, laudos e atendimentos a clientes.
Quando percebi, o trabalho já estava no sangue e nem parecia que eu estava dormindo pouco, comendo mal e envelhecido mais dez anos em apenas dois meses. Dez anos é uma diferença significativa na minha idade. A pressão subiu e o resto todo caiu. Alguém perguntará, que resto? Sei lá, quando se trabalha sem parar tudo vira resto.
Julgando-me perturbado, as vozes se fizeram mais constantes, soprando aos meus ouvidos histórias diversas com personagens e situações igualmente diferentes, que eu tentava rascunhar.
Os vultos assumiram cores e formas conhecidas já numa adorável alucinação. Era Fullana, sempre presente.
Um dia colocava suas mãos nos meus ombros para eu perceber suas unhas pintadas de negro. Em outro, sentava e cruzava suas longas e belas pernas, em movimentos circulares e propositais que me permitiam ver a cor de suas peças mais íntimas, em tecido ou sem ele.
No auge das aparições, sentou-se na minha mesa entre o monitor do computador e eu. Abriu as pernas, pegou meu rosto com suas mãos e aproximou-se até quase me tocar. Com um leve sorriso questionou:
- Você não vai escrever mais? Não?
Admiti a falta de tempo e minha insatisfação com isso.
- Tenho tentado mas não consigo tempo. Não queria parar, mas...
- Filhinho, nós temos uma relação que não vai acabar assim. Somos cria um do outro, nos alimentamos. Você nunca me deixou na mão.
- Mas Fullana, minha querida, estou com dezoito textos inacabados e ...
Ela me interrompeu, olhou-me nos olhos, molhou os lábios com a língua e disparou:
- Estou com fome. Escreve, vai.....
Arranjei um tempo.
Fullana transforma a falta de tempo em ficção e se impõe. Pura realidade.

quarta-feira, julho 20, 2005

A Idade e o Ciúme

Acordou cedo. Meio preguiçoso, esticou-se e ficou sentado na cama alguns minutos. Dormiu sentado e acordou com a segunda investida do despertador.
Cambaleando, levantou e foi direto para o chuveiro numa tentativa de acordar.
Acordou.
Short vermelho, camiseta olímpica, um tênis de última geração e aquela maldita barriguinha saliente.
Partiu para a sua corrida matinal, antes do trabalho. Na verdade, era a sua primeira corrida matinal após muitos anos de inatividade, mas ele nunca admitiria isso aos amigos.
Ficou exausto, óbvio. Sentiu-se um verme ao retornar para casa, após percorrer os míseros dois mil metros do percurso, tropeçando nas pedras portuguesas da calçada.
- Estou acabado. Acho que fiquei velho. Resmungou.
Fullana tentou animá-lo:
- Que é isso? Você está ótimo. Daqui a pouco você está tirando esse percurso de letra. Porque você não se inscreve da meia maratona de masters?
- Pois é, corrida de velho! Irritou-se.
Fullana disfarçou e foi para o banheiro morrer de rir. Ele estava arrasado, era verdade, e rir na frente dele uma maldade.
Ele tomou novo banho, vestiu-se elegantemente, numa tentativa de elevar a moral, e foi trabalhar ainda um pouco cansado.
Fullana tentou melhorar as coisas com um beijo na saída de casa.
- Nossa! Que gato!
Ele miou para ela, na tentativa de não perder seu habitual bom humor. Saíram juntos.
Pegaram o metrô. Com o vagão um pouco cheio, um rapaz levanta-se e lhe oferece o banco laranja, preferencialmente destinado aos idosos. Todos olham para ele. Na verdade, talvez poucos tenha atentado para a situação, comum no metrô, mas ele se acha observado pelo planeta inteiro. Fullana, obviamente, olhou para o lado oposto, prendendo o riso.
Ele agradeceu e recusou a oferta. Era educado. Outras pessoas entraram e saíram do vagão. O banco laranja ficou lá, vazio, como que esperando por ele.
Tomou força a idéia da velhice.
A manhã passou e esqueceu um pouco o assunto.
No almoço, entra numa loja de doces onde é atendido por uma linda moça.
- Posso ajudá-lo, senhor? Sorriu a jovem, insinuando-se numa falsa servidão.
Aquela inocência perversa, segundo ele, liquidou qualquer intenção. “Ajudá-lo” e “senhor” foram duas palavras que soaram cruéis naquele dia. E logo daquela menina com carinha de anjo e olhar de diaba.
Era sincero, comentou com Fullana e ouviu um sonoro:
- Bem feito, seu cachorro.
Arrependeu-se. Fullana não esqueceria aquilo.
A tarde demorou a passar. Precisava encontrar forças para superar a idéia obsessiva da velhice.
Quarenta e oito anos não é idade de velho, pensava quase convencido.
Chegou em casa depois de Fullana. Jantaram juntos num meio silêncio.
Ligou a televisão, coisa que nem sempre fazia, e lá estava uma reportagem do maldito telejornal. Uma animada senhora convidava as pessoas a ingressarem num clube da terceira idade. Teceu todas as vantagens e foi auxiliada pelo repórter:
- O que precisa para entrar no clube?
- Apenas muita disposição e ter mais de quarenta e cinco anos. Sorriu a animada velhinha.
Ele arriscou um olhar para Fullana. Ela encheu as bochechas tentando prender o riso, mas não resistiu, morreu de rir.
- Vai lá se matricular, seu pedófilo das docerias.
Ele se calou e pensou em comprar um pijama.
Ao dormir, Fullana deu o golpe final:
- Vou fechar a janela. Você está com o corpo quentinho e pode pegar um golpe de ar. Pneumonia em idoso é um problema e duvido que aquele anjinho safado da doceria saiba cuidar de doente. E velho.
Ele preferiu fingir que estava dormindo. Ela virou para o lado e sorriu. Era pura provocação, o ciúme já tinha passado.
Apagou a luz e discretamente encostou o corpo no dele. Ele estava quentinho mesmo.

quinta-feira, julho 14, 2005

Eu e Fullana - I

No telefone, ouço a voz de Fullana indignada:
- Você sabe que não gosto de televisão, não sabe?
- Nem de novela?
- Deteeeeeesto novela. Mas não muda de assunto, Zé. Ontem, resolvi assistir ao Jornal Nacional.
- Tá sem programa? Podemos sair. Insinuei.
- Já te disse que só podemos ser amigos. Tenho um pressentimento ruim.
Fullana era enigmática, às vezes.
- Deixa eu contar a minha história? Irritou-se.
Calei-me e preferi ouvir o que tinha a dizer.
Na gostava de telejornais. Achava que não acrescentavam nada e eram mensageiros do sadismo.
Mas ontem, enquanto lixava as belas unhas preparando-as para a pintura, ficou atenta à televisão, no telejornal das oito da noite.
A primeira reportagem foi sobre corrupção no governo. Demorou uns cinco minutos e já emendou em outra, sob corrupção também. A terceira foi igualmente sobre corrupção.
Fullana levantou-se e pegou um caderninho para anotar. Disse que resolveu fazer uma estatística dos temas apresentados no tal telejornal nacional.
Atenta e criteriosa para não falhar em alguma classificação registrou oito reportagens sobre corrupção, três sobre tragédias diversas, uma sobre crime ambiental, outra sobre cambio negro com ingressos para o futebol, que lhe rendeu alguma dúvida quanto à classificação. Prática como sempre, já impaciente, registrou como crime.
Para aliviar, entrou a previsão do tempo. Relaxou um pouco quando chamou a bela menina do tempo de galinha. Tinha motivos. Com um sorriso que as aves não possuem, a bela anunciava uma frente fria com temporal para o fim de semana. Fullana, que gostava de combinar a cor das unhas com suas intenções, mudou de esmalte. Chamou a bela da TV de galinha novamente, na despedida, com um sorriso malicioso no canto da boca.
Registrou ainda uma última notícia esportiva.
Na exibição da vinheta de encerramento, apurou os seus registros. Foram quinze reportagens, todas de fazer chorar. Nenhuma sobre artes, nem educação, nem nada de bom. Ficou a impressão de que não existia nada de bom neste país.
- Ai, Zé! Me senti uma porcaria, num país de porcaria. Tô com vontade de esganar toda essa mediocridade.
- Só posso te dizer uma coisa, vou escrever sobre isso. Posso?
Fullana sorriu e mudou o tom da voz.
- Pode. Mas com uma exigência....
- Qual?
- Diz que eu chamei aquela horrorosa de galinha. Um beijo.
Desligou às gargalhadas. Foi à geladeira, tomou um copo de leite. Soltou os cabelos e deitou em seu travesseiro de plumas de pato para seu sono de rainha.

segunda-feira, julho 11, 2005

Álbum de Fotografias

Repassava um antigo álbum de fotografias com uma certa nostalgia, daquelas de quem não tem muito a fazer. Vida vazia, talvez.
Parou para observar a foto de uma grande amiga. Daquelas amigas de muitos anos que compartilharam muitos momentos e gozavam de uma intimidade quase maternal. Até dormiam juntas. Sim, era como uma mãe, especial.
Com o olhar desviado para lugar nenhum, lembrou, ao mesmo tempo, de muitos momentos. Daquelas viagens que o pensamento dá. Ela partilhara todas as separações de Fullana sempre pronta a consolar. Da última, foi apenas mensageira. Confidente e influente na formação da opinião dela como devem ser as amigas.
Retornou ao álbum e virou a página.
Outra foto de uma linda mulher. Uma beleza européia de cabelos louros finlandeses. O olhar da foto, de um incrível azul, transparecia melancolia. Sorria mas parecia não sorrir, faltava a alegria do sorriso. Novamente o olhar de Fullana torna-se distante. Pensa naquela figura belíssima que já havia colecionado alguns amores. Passaram pelo corpo e pela vida mas não ficaram. Solitariamente bela.
Passa rapidamente algumas folhas do álbum. Passeiam pela sua visão, agora atenta, inúmeras figuras. Personagens conhecidos que compartilham aquelas páginas da mesma forma que compartilham a sua vida. São amigos, parentes, figurantes, alguns vazios. Fotos que foram rasgadas. Provavelmente de ex-amores, não se lembrava mais. Fullana não deixava vestígios de amores passados.
Chega à última página. Estava vazia há pouco tempo. Apesar da foto rasgada e ausente, ainda lembrava do sorriso dele.
Novamente os olhos se perdem em algum lugar. Não chora. Sorri, lembrando das brincadeiras e promessas dele, dizendo que apareceria para ela, mesmo depois de morto, se ela deitasse com outro homem.
Ele não morreu, mas também não apareceu, como sempre prometera.
Retorna ao álbum, e vira a última página numa imensa sensação de infelicidade e solidão, comum em todas as fotos.
Suspirou e lamentou que ele não tivesse aparecido, isso poderia ter mudado o seu destino. Mesmo assim, deixou a última página em branco.

terça-feira, julho 05, 2005

Intenso

Sonhei-te princesa,
depois rainha.
Sonhei-te santa,
depois puta, devassa,
Todas somente minhas.

Mas santas são de todos,
rainhas são de todos,
putas são de todos.
E todos pensam tê-las só para si.
Somos tolos.

Mas amo-te esse amor
cortesão, medieval,
servo e senhora,
ama e senhor.

Tão intenso, tão intocável amor,
que leva o inferno à vida e, depois,
da vida ao paraíso,
desfazendo toda a dor.
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