sexta-feira, setembro 30, 2005

Penha Circular

Ainda lembro do dia em que te conheci.
Nossos sonhos se encontravam. A curiosidade nos impulsionava, sem controles, na direção do nosso nariz.
Eu, sentado no banco de cimento na calçada empoeirada, gostava de ficar olhando os carros e os ônibus passarem. Gostava de ler, lá no alto do coletivo, o destino de cada um. Para onde levavam aquelas pessoas.
Aos onze anos de idade experimentava uma ingênua curiosidade pelo destino.
Às vezes, me distraía contando os táxis que passavam. Eram poucos naquela época. Uma contagem para nada, sem contar o tempo. Tempos de menino. Tempo que já estava sendo contado.
Numa dessas distrações, envolvido em poeira e barulho de freio, o vento limpa o ar e me deparo com parte do seu rosto emoldurado pela janela do ônibus. Você, ainda menina, tinha a rua ao alcance de uma lúdica visão.
Seus olhos brilhantes e aguçados decifram a calçada e me vêem.
Da rua vejo apenas esses olhos que, pela expressão, sorriem para mim.
Em ato reflexo corro e entro pela porta de trás. Subo as escadas apressadamente, pago a passagem e recebo uma ficha de plástico vermelha. Sento ao seu lado naquele banco.
Você sorri discretamente, como sempre, e eu pronuncio um tímido oi. O novo sorriso me deixa mais à vontade. Contemplo você sem saber o porquê, um prazer que ainda conservo. Buscando iniciar uma conversa, pergunto para onde vai o ônibus. Lembro da sua infantil cara de espanto e num tom de voz quase confidencial respondeu:
- Penha Circular.
- Você mora lá?
- Não, só quero saber onde é esse lugar – disse sorrindo. E você?
- Também quero saber onde é – respondi sem pensar.
Ah, as mentiras infantis! Podem construir sentimentos deliciosamente eternos.
- Como é seu nome?
- Fullana. Fullana Maria. E o seu?
- Zé.
- Zé? Só Zé? – E riu.
E eu, meio sem jeito:
- É, um Zé qualquer.
Rimos muito e conversamos também. Aliás, como sempre.
Não sei quanto tempo conversamos naquele ônibus, mas quando percebi já tinha retornado ao local de início daquela aventura e precisava deixá-la. A Penha Circular havia passado e continuávamos sem saber onde era. Mas dormi pensando em você, como sempre.

quinta-feira, setembro 22, 2005

Visitas Inoportunas

Recentemente li na Folha de São Paulo um artigo sobre fanatismo. Perdoe-me o articulista por não lembrar o seu nome, mas uma frase me chamou à atenção. Falava sobre o prazer dos moralistas em atribuir a castigos divinos as tragédias, sejam elas pessoais ou coletivas, que por infortúnio venham a recair sobre as vidas daqueles que são felizes e não comungam com seus ideais reacionários.
Ora, estar livre de situações infelizes na vida é estar condenado ao não existir.
Mas essas enfermas criaturas, imbuídas de uma missão pseudo-apostólica e não satisfeitas em assistir à tal fúria divina, saem ao mundo numa cruzada insana impondo seus semelhantes ao seu próprio julgamento.
Quem lê este blog já pode ter percebido que periodicamente sou visitado por um leitor, provavelmente leitora, que se intitula Fullana ou assume outros nomes. Tal criatura atua incluindo inúmeros comentários desconexos e incompreensíveis, inclusive me ameaçando com a ira divina ou a sua própria. Não satisfeita, está procedendo da mesma forma em blogs de amigos e, pior, citando o meu nome.
Entendo que o personagem Fullana seja fascinante e muitos desejem estar “na pele” dela, seja pela personalidade marcante ou pelos elogios descarados que o autor assume integralmente, numa sincera declaração de admiração e, às vezes, amor. É certo que alguém do mundo real serve de base ao personagem, alguns enredos e características. Nunca neguei. Mas prefiro Fullana na ficção e sua identidade ficará protegida assim eternamente. Ela nunca comentou no meu blog e sequer sei se ela o lê. Se comentasse, traduziria sua cultura, equilíbrio, discrição e, mesmo anônima, nunca importunaria ninguém me usando como referência, muito menos valendo-se de qualquer outra alusão religiosa.
Assim, tenho me limitado a excluir os comentários que aparecem e sugiro o mesmo a quem se sentir importunado.
Nessa temporada de Katrinas, Olgas, Ritas e outros, lembrei-me dos furacões com nomes femininos que já varreram a minha vida. Como bem definiu Fullana certa vez, sou flexível e talvez por isso tenha resistido a todos eles. Desafio à ira divina? Não penso nisso. Prefiro crer no amor, divino ou profano.

sexta-feira, setembro 16, 2005

Anatomia de Fullana, As Mãos

Eu nunca esqueço a primeira vez que você pegou na minha mão. Foi para atravessar a rua, num gesto despretensioso. Éramos amigos. Essas frases eram sempre repetidas por Fullana quando nossas mãos se encontravam.
Você tem as mãos tão macias, grandes, delicadas e gostosas. Nossa, que carinhos! Frases repetidas pela sua doce voz.
Talvez ela nunca tenha percebido, nem eu, que as minhas mãos eram apenas reflexos das suas. Que aprenderam carinhos no tato daquelas mãos suaves e calmas. Suavíssimas.
Como um espelho, refletiu movimentos e sutilezas num lesbianismo involuntário expresso nos carinhos recíprocos que nos proporcionaram.
Ah, as suas mãos Fullana! Ainda as vejo acariciando minha fronte traduzindo paz e num mesmo movimento, em outro tempo, afagando meu falo em carícias preparatórias a um prazer quase eterno.
Mãos que ainda curam e seduzem. Mãos que despertam o prazer de um simples contato.

terça-feira, setembro 06, 2005

Álbum de Fotografias II - Anjo

Fullana achava o Ademar um bom sujeito. Quase nunca de mau humor. Era daqueles que raramente deixavam de rir. Não aquele riso chato, impertinente, mas o riso dos alegres, dos felizes, dos gordos. Sorriso farto, recheado, com molhos e sobremesas.
Ademar pesava cento e cinqüenta quilos que nunca limitaram aquela desenvoltura característica dos bem relacionados. Transitava com facilidade em meios heterogêneos. Relacionava-se com políticos, religiosos, vizinhos, amigos de infância e todo tipo de gente. Era uma criatura social, não discriminava ninguém e estava sempre pronto para uma conversinha. Tinha bom papo.
Amava a boa mesa. Quando Fullana queria ver o Ademar feliz era só colocar um bom prato de comida na frente dele, de preferência cheio, bem cheio. Ele sorria e mandava:
- Você está querendo agradar o gordo, né? E gargalhava antes da primeira garfada.
Era religioso. Um homem de fé. Mas entregava-se ao pecado da gula sem remorsos. Até feliz.
Às vezes víamos o Ademar distribuindo santinhos e mensagens religiosas aos amigos, sempre com desenvoltura e gestos pastorais. Mas o que gostava mesmo era movimentar a turma do escritório nas ações sociais. Recolhia alimentos, roupas, agasalhos, brinquedos, tudo encaminhado a instituições que cuidavam de desvalidos. Era um homem bom, um incansável, um anjo.
Mas tinha um gosto especial por outro pecado. A luxúria.
Adorava uma sacanagem. Falou em sacanagem, o Ademar estava lá. Sempre rindo muito, alegre. Sentia-se numa segunda casa em qualquer prostíbulo. Era tratado com um carinho quase familiar pelas prostitutas às quais chamava de primas. Ciceroneava os amigos novatos indicando atributos, desempenho e aptidões de cada mulher de aluguel.
Numa das últimas quedas, um amigo convidou o Ademar para uma festinha particular. Entrou em estado de ansiedade aguda.
- É uma suruba? Quantas mulheres? Não quero nem que Deus me ajude.
Esfregava as mãos enquanto revirava os olhos.
Fullana preferia fingir que de nada sabia.
À noite o Ademar estava lá. Bebendo e entregando-se ao seu pecado predileto cercado de jovens dadivosas.
Chegou em casa já madrugada e entrou na ponta dos pés.
No dia seguinte estava no trabalho pontualmente e lá pelo meio da manhã foi visto entregando papéis delicados em forma de pergaminhos aos colegas. Fullana não se conteve.
- Que é isso Ademar?
- São convites para um encontro de casais com Cristo que estou promovendo.
E olhou Fullana com cara de cão triste. As olheiras da noitada eram evidentes.
- Tu não tem vergonha não? Vai para a orgia e volta com essa cara de pau? Seu safado!
Ademar tinha resposta para tudo. Disfarça e a puxa Fullana pelo braço para um canto do escritório.
- Olha aqui. Dos sete pecados eu tiro cinco de letra. Só perco em dois. Cinco a dois pro papai aqui, é goleada minha querida. Hoje é dia de feijoada, vamos almoçar juntos?
E sorriu o seu melhor sorriso.
Era um anjo, quase decaído.

sexta-feira, setembro 02, 2005

Anatomia de Fullana, Os Pés

Na vitrine os pequenos refletores voltavam-se para uma peça única. Em metal brilhante, a jóia descansa sob um pedestal acetinado. Na displicência da beleza incomparável, se oferece num adorno de rubis que interagem em simbiose de brilhos e glamour. Uma jóia branca e vermelha.
Num flash viajo aos pés de Fullana. Exibidos em sandálias que os expunham como aqueles pedestais da joalheria. Lindos e delicados pés, brancos como o ouro daquela jóia que não ousava competir com eles. Igualmente adornados, numa variação criadora digna dos mais audaciosos fetiches. Uma hora com unhas rosas qual turmalinas, outras esverdeadas como esmeraldas, ou negras, desafiadoras, poderosamente arrebatadoras.
Vejo esses pés firmes atravessando ruas ou dançando em salões, na condução dos meus, menos hábeis nessa arte. É verdade que nossos passos nunca seguiriam um caminho único. Às vezes corriam em direções opostas. Em outras caminhavam em paralelos que, independente da velocidade, nunca se encontrariam. Mas esses lindos pés já se aproximaram de tal forma dos meus que muitas vezes confundiram-se em carícias mutuamente submissas.
Na vitrine da minha lembrança, os pés de Fullana descansam sobre os lençóis após o amor, transfigurados numa jóia de ouro branco adornada por unhas tingidas de rubi que já passearam por meu corpo.
Esses pés que tanto beijei. E que beijo, neste momento.
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