quarta-feira, setembro 27, 2006

Magia dos Erês

Logo cedo Fullana recebeu um saquinho com doces. Os olhos brilharam como há muito não ocorria. Brilho quase infantil.
No mesmo tempo ele recebeu o seu saquinho. Conteúdo da mesma natureza. Doces para a vida e para a alma. Não perdeu tempo. Abriu com rapidez e tratou de escolher o primeiro a saborear. Alisou cada um com uma certa nostalgia e quase reverência mística. Aquela bruxa sempre me encanta, pensou sem reservas. Escolheu um doce conhecido na sua infância como “peitinho de moça”, uma massa de açúcar, gelatina e coco, moldada em forma de um pequeno seio. Uma delícia. Lambeu o doce lembrando instintivamente do seio desejado. Mordeu lenta e delicadamente cada pedaço como se estivesse debruçado sobre Fullana. Saboreou-a.
Distante dali, ela abre o saquinho com sua aparente displicência habitual. O coração se alegra como as crianças diante dos doces. Com cores e aromas saltando aos sentidos escolheu uma Maria-mole, um doce comprido elaborado a partir da mesma massa de açúcar, gelatina e coco. Coincidência? Talvez. No contato com a mão, o volume sobressai na mente. Lembranças. Cachorro, pensou nele. Numa tentação instigadora, disfarça e mede o doce com uma régua de plástico sobre a mesa. Quatorze centímetros. Não se compara, deixou escapar pelos lábios. Mas, nostálgica, reviveu as várias vezes que sentiu o falo dele superar essa marca sob as carícias de suas mãos. Em transe, percebeu-o maior e rijo. Sob o aroma doce, mordeu e comeu lentamente enquanto umedecia as peças íntimas, como dantes. Lambeu os últimos grãos de açúcar nos lábios e sentiu-se saciada.
Como crianças, adoçaram as ausências na magia dos erês.

sexta-feira, setembro 08, 2006

Grito do Excluído

Ô pai, eu posso votar? Não menino, você só tem oito anos. Então porque eu tenho que assistir ao programa eleitoral? Você não precisa, pode fazer outra coisa. Mas eu quero ver televisão. Então, agora, só tem o programa eleitoral. Mas o Marquinhos me disse que muda de canal na hora desse programa. Mas o Marquinhos tem tv a cabo e nós não temos. Porque nós não temos tv a cabo? Porque somos pobres e não podemos pagar a tv. O menino pensou um pouco. Então o programa eleitoral é só para os pobres? O pai fingiu ler alguma coisa para não ter que responder.
Foram poucos minutos de silêncio.
Pai, você pode votar? Sou obrigado. É mesmo? É, e todos os maiores de dezoito e menores de setenta anos são obrigados a votar. Porque obrigados? Porque existe uma lei que determina que essas pessoas têm que votar. E se a pessoa não votar? Ela perde uma série de direitos. Porque? Porque está descumprindo a lei. Que direitos? Ah, não pode tirar passaporte, carteira de identidade, pode até perder o emprego e outras coisas. Então quem não vota descumpre a lei? Sim. Pai, bandido descumpre a lei? Descumpre. Então quem não vota é bandido? Não é bem assim, digamos que está ilegal, um infrator. O Fernandinho Beira-mar vota? Não, ele não vota. Ele é infrator? É. Se você não votar vai ser famoso igual a ele? Que bobagem, menino.
Breve silêncio, com o menino de olho no programa eleitoral.
Pai, o que é sanguessuga? É um bicho. Bicho? É, um verme. E o que é máfia dos sanguessugas? Nesse caso é um apelido que deram a deputados que ganharam dinheiro de forma ilegal. Ilegal? É, ilegal. Igual infrator? Isso, igual infrator. O Fernandinho Beira-mar é sanguessuga? Não menino, ele é bandido, sanguessugas são os deputados. Mas sanguessuga e bandido não são ilegais? São, mas com deputado é diferente. Você vota em deputado? Voto sim. Vota porque é obrigado? Isso mesmo, porque sou obrigado. Como você escolhe o deputado que você vai votar? Procuro ver se ele é bom. Como você sabe se ele é bom? Pelo que ele já fez ou pretende fazer. Ele diz tudo o que já fez? Diz. Tudo de bom e de errado? De errado não deve dizer senão ninguém vota nele. Então você acha ele bom mesmo sem ele dizer o que fez de errado? Não tem outro jeito. Mesmo assim você tem que votar? Tenho sim, porque sou obrigado, mas às vezes penso que seria melhor ficar ilegal do que escolher um safado desses. Se eu não disser o que fiz de errado você também vai me achar bom? Vou te dar umas palmadas.
O menino tratou de ficar quieto e recolheu-se.
No dia seguinte chega da escola sujo, roupas rasgadas e braços arranhados.
Que foi isso menino? Eu briguei com o Marquinhos. Porque? Eu disse para ele que não tinha tv a cabo, que você não tinha passaporte, não era famoso igual ao Beira-mar, que preferia virar bandido que votar, que eu não podia esconder as coisas erradas de você igual deputado senão ia apanhar e sabe o que ele disse? O quê? Que eu era um excluído, um verme. Excluído? É, aí achei que era igual sanguessuga ou bandido e me embolei com ele.
Tomou um banho, fez curativos e correu para a tv antes que começasse o tal programa.
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