sexta-feira, outubro 01, 2004

A bela é a fera

Era uma mulher fina e elegante. Usava sandálias de saltos altos que sempre deixavam à mostra seus belos e delicados pés. Pezinhos daqueles que dão vontade de beijar eternamente. Pés de menina, apesar de madura.
Não andava, desfilava. Nada intencional, era na maior naturalidade.
Os vestidos de seda, sempre generosos nos decotes, escondiam com uma certa displicência o corpo bem cuidado que só as mulheres de classe possuem. Aquelas belas das colunas sociais.
Transparecia uma elegância imperial. Coisa de nobreza que só aqueles que acreditam na reencarnação saberiam explicar.
Era uma mulher, e se existem características que são marcantes nas mulheres, uma é o talento para bons negócios.
Adentrou o supermercado proporcionando momentos de raro prazer aos carregadores, vigilantes, supervisores de caixa e outros funcionários do sexo masculino. Seu perfume, atrevidíssimo, buscava os admiradores já paralisados com a sua presença e provocava uma certa inveja nas mulheres, outra característica marcante nelas. Mas nem se apercebia disso.
Era uma mulher comum e estava ali para o comum papel de buscar suprimento para a família. No seu displicente caminhar ouve o aviso de uma promoção relâmpago. Morangos a setenta centavos a caixa. Com o dinheiro escasso, seu talento para os bons negócios se aguçara. Baratíssimo, pensou. Instintivamente correu para a banca dos morangos.
Tal qual ela, porém, muitas outras correram, inclusive as invejosas da portaria, afinal, eram morangos a apenas setenta centavos. Um bom negócio. E lá se foi, correndo, aquela perfumada dama.
Diante da banca de morangos, o instinto falou mais forte. A reencarnação foi subjugada. Lutava com suas semelhantes pelas caixas de morangos mas experimentou a força da maioria. Aquelas descabeladas com camisetas de políticos, pés encardidos e cheirando a cebolas perceberam que havia uma estranha no ninho, a dama perfumada, e se empenharam nos empurrões. Mas aquela bela mulher, sentindo-se ameaçada de não conseguir seus morangos a setenta centavos, resolveu partir para a briga e literalmente perdeu a linha. Empurrou, cutucou, estapeou e xingou. Por momentos achou que rosnava para uma gorda que fazia uma barreira impedindo-a de chegar aos tão desejados morangos.
Chega em casa triunfal com três caixas da saborosa fruta. Decidida, toma um banho morno, prepara um prato de morangos com chantilly e se aconchega em seus lençóis de cetim para saboreá-los.
Na apuração dos resultados do negócio, lucrou um Real e vinte centavos. Entre as perdas em combate, um salto quebrado e uma mancha da fruta no vestido de seda.
Prejuízo? Claro que não. A auto-estima nunca estivera tão bem diante da vitória sobre as invejosas.
Sem perceber, adormeceu como um anjo, com os lábios avermelhados e doces.
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