segunda-feira, agosto 22, 2005

Aprendendo

Abandono hoje os contos para contar uma outra história. Real, mas daquelas que poderiam passar despercebidas não fosse a existência de criaturas teimosamente especiais.
Há oito meses cumpro um ritual quase islâmico de peregrinação à minha Meca, meu oráculo, à casa de meu pai.
Infelizmente, como alguns sabem, um homem que caminhava diariamente, tinha pressão arterial normal, bem melhor que a minha, auxiliava na manutenção de três creches, e lidava lá com suas imperfeições, teve o cérebro varrido por um acidente vascular cerebral hemorrágico e isquêmico que lhe consumiu um terço de massa cinzenta tornando-a inoperante.
Esse homem, que hoje só tem dois terços do cérebro a lhe comandar os movimentos, pensamentos, desejos e funções vitais, parecia, aos meus olhos, transformado em outro homem. Hemiplégico, sem condições de movimentação sequer para virar-se na cama, passou a merecer atenção especial de amigos, vizinhos e parentes.
Mas, na seqüência da vida, a rotina de cada um foi tomando seu espaço. O tempo foi passando e os amigos aparecendo menos, os vizinhos igualmente, os parentes da mesma forma. Cada um seguindo às necessidades de suas vidas.
Mesmo estando em casa, cercado de um mínimo conforto e atendimento, aquela limitação tornou-se mais evidente. Há tempos eu sentia um incômodo em vê-lo naquela situação mas não percebia que também participava de tudo. Tinha passado a visitar um doente e não mais o meu pai. Sempre a rotina nos anestesiando.
A partir dessa percepção e numa tentativa de livrar-me da culpa, propus um domingo diferente, sem imaginar que aquele velho homem ainda me reservava mais um ensinamento. Juntei os netos, ele e passamos um domingo como há oito meses não passávamos. Fizemos almoço juntos, saímos de carro e passeamos na rua, brincamos com cachorros, discutimos futebol, falamos mal da família, tudo com dificuldades e limitações, mas foi divertido.
Deixei-o dormindo um sono traqüilo e voltei para minha casa. À noite, o telefone toca. É ele.
- Oi meu filho. Estou ligando para te agradecer uma coisa. Quando eu pensei que a vida tinha acabado, você me mostrou que não.
Mandou-me um beijo, desejou boa noite e desligou sem me deixar falar nada. Não falaria.
Sem saber, quem mais uma vez me mostrava algo era ele, meu pai.
Com um teço do cérebro morto, ainda me ensina coisas das mais importantes. Do amor.
Porque estou escrevendo isso? Porque meu pai sempre me inspirou as melhores coisas. As piores, eu aprendi sozinho mesmo.
eXTReMe Tracker