segunda-feira, maio 30, 2005

Má Intenção

Brigaram feio. Não era a primeira vez, mas contava que não seria a última. Essas coisas de ir empurrando até ver onde dará.
Dormiram um em cada quarto e pela manhã não se falaram.
A vida tem surpresas.
Chegou no trabalho tarde e ligou para ela.
- Fullana está?
- Desculpe-me senhor, mas Fullana não veio trabalhar hoje.
Achou estranho, ela não era de faltar.
Na dúvida esperou um pouco e ligou para casa. Nada, ninguém atendia.
- Ela deve estar zangada. Pensou alto.
Quando chegou em casa à noite não encontrou ninguém. Não encontrou nada dela. Tinha ido embora durante o dia e levado todos seus pertences.
Deixou um bilhete dizendo que a chave estava embaixo do tapete, bateu a porta e se foi enquanto ele trabalhava pensando que ela estava apenas zangada. Tolinho.
Ele ficou com cara de bobo e dormiu com a mesma cara.
No dia seguinte telefonou. Ela estava.
- Aluguei um apartamento de temporada para morar. Não quero mais.
Fullana era decidida.
Ele sentiu-se bem, solteiro novamente. Voltou para casa feliz mesmo sabendo que em breve sentiria saudades.
Agora o assédio àquela vizinha da rua ficaria mais fácil.
Foi ao banheiro, lavou as mãos e abriu o pequeno armário para ver o que precisaria repor.
Não faltava nada, ela não tinha levado nada. Saiu cantarolando, parou no corredor, voltou. Abriu o armário e constatou:
- Cadê o tubo de lubrificante? Cadê o KY?
Fullana havia levado. Deixou tudo menos o lubrificante. Sabia fazer ele subir pelas paredes mesmo ausente.
Acabou a felicidade, esqueceu a vizinha.
- Aquela cachorra estava mal intencionada. Filha da Puta.
Esbravejou em vão. Estava consumado.

quarta-feira, maio 25, 2005

Benditos os Malditos

“ Eu não tenho uma personalidade; eu sou um coquetel, um conglomerado, uma manifestação de personalidades.
Em mim, a personalidade é uma espécie de furunculose anímica em estado crônico de erupção; não passa meia hora sem que nasça uma nova personalidade.
Desde que estou comigo mesmo, é tal a aglomeração das que me rodeiam, que minha casa parece um consultório de uma quiromante de moda. Há personalidades em todas as partes: no vestíbulo, no corredor, na cozinha, até na privada.
Impossível ter um momento de trégua, de descanso! Impossível saber qual é a verdadeira!
Embora me veja forçado a conviver na promiscuidade mais absoluta com todas elas, não me convenço de que me pertençam.
Que tipo de contato podem comigo – pergunto-me – todas essas personalidades
inconfessáveis, que fariam ruborizar a um carniceiro? Deveria permitir que se me
identifique, por exemplo, com este pederasta murcho que não teve nem a coragem de se realizar, ou com este cretinóide cujo sorriso é capaz de congelar uma locomotiva?
O fato de que se hospedem no meu corpo é suficiente, no entanto, para enfermar-me de indignação. Já que não posso ignorar sua existência, quisera obrigá-las a que se ocultem nas pregas mais recônditas de meu cérebro. Mas são de uma petulância... de um egoísmo... de uma falta de tato...
Até as personalidades mais insignificantes se dão uns ares de transatlântico. Todas, sem nenhuma espécie de exceção, se julgam com direito a manifestar um desprezo olímpico pelas outras e, naturalmente, há brigas, conflitos de todo tipo, discussões que nunca terminam. Em vez de confraternizar, já que têm que viver juntas, pois não, senhor!, cada uma pretende impor sua vontade, sem tomar em conta as opiniões e os gostos das outras. Se alguma tem uma ocorrência que leve às gargalhadas, no mesmo instante sai qualquer outra, propondo-me um passeio ao cemitério. Nem bem aquela deseja que me deite com todas as mulheres da cidade, esta se empenha em demonstrar-me as vantagens da abstinência, e enquanto uma abusa da noite e não me deixa dormir até de madrugada, a outra me desperta com o amanhecer e exige que me levante junto com as galinhas.
Minha vida resulta assim uma prenhez de possibilidades que nunca se realizam, uma explosão de forças encontradas que se entrechocam e se destroem mutuamente. O fato de tomar a menor determinação me exige um cúmulo tal de dificuldades, antes de cometer o ato mais insignificante necessito por tantas personalidades de comum acordo, que prefiro renunciar a qualquer coisa e esperar que se extenuem discutindo o que vão fazer comigo, para ter, pelo menos, a satisfação de mandá-las todas juntas à merda. “ (*)

Invejo esse texto, escrito em 1932 e sempre atual porque humano.
É um daqueles que gostaria de ter escrito. Sem falsos pudores.
Benditos os malditos, vanguardistas. Só eles podem abalar o império da mediocridade.
Baudelaire, Rimbaud.
Bendito seja Oliverio Girondo.

(*) De Espantapájaros. (1932)
Oliverio Girondo

segunda-feira, maio 23, 2005

Esquecendo as Descobertas

Namoravam. Um amor lindo. Daqueles quase eternos, sujeitos a desencontros e intrigas. Sempre a inveja humana.
Trocavam carícias diárias num mar da doçura.
Pequenas cenas de ciúmes. Independentes.
Gostava das mãos masculinas, mas as dele.....
Que coisas suaves. Suavíssimas.
Macias, sempre a percorrer seu corpo, suas pernas.
Impressionava a habilidade dele em dirigir com uma das mãos, enquanto a outra lhe buscava o clitóris, subindo pelas pernas em carícias sublimes. Pequenas infrações no trânsito. Justificadas.
Descobriu com ele o poder de sedução de seus cabelos. Nem imaginava isso. Gemeu carinhosamente o nome dele todas as vezes que ele a puxou pelos cabelos para junto do seu corpo nu. Doce domínio, doce prazer.
Sempre que o vento atirava-os para trás, sentia aquelas mãos sempre suavíssimas. Não gemia em público, mas suspirava, mesmo diante de um novo amor.
Fullana passou a usá-los longos, mesmo quando ele foi embora. Não queria perder aquele encanto.
Descobriu os prazeres de sua boca em beijos deliciosos, públicos, interminavelmente doces.
Ele insistiu nas maravilhas que sua boca poderia proporcionar num sexo oral.
- Deixa eu te chupar. Você vai gostar.
- Sinto cócegas. Fullana argumentava fingindo-se tímida.
Não deixou. Não tinha gostado de outras vezes. Deixou-se levar pelos incompetentes.
Não deixou aquela boca mostrar-lhe tudo que podia lhe dar. Nem ouvindo-a.
Um dia veio a arrepender-se do tempo que passara. As mãos e bocas nunca mais foram iguais àquela. Nem as declarações de amor.
Os cabelos? Foram cortados. Não tinham mais uso.

sexta-feira, maio 20, 2005

E Daí?

Hoje acordei Ariano. Sou de Áries sim, e daí?
Acordei enfiando o pé na porta e depois pedindo licença.
Lembrei Cazuza, peço licença.

“Pra quem não sabe amar,
fica esperando
alguém que caiba no seu sonho”

“Pra pessoas de alma bem pequena
Remoendo pequenos problemas
Querendo sempre aquilo
Que não têm”

“Você nunca ouviu falar em maldição
Nunca viu um milagre
Nunca chorou sozinha num banheiro sujo
Nem nunca quis ver a face de Deus.”

“A tua piscina está cheia de ratos
Suas idéias não correspondem aos fatos
O tempo não pára”

“O meu amor foi embora e só deixou pra mim um bilhetinho todo azul
com seus garranchos”

“Mas se você achar que eu estou derrotado
Saiba que ainda estão rolando os dados
Porque o tempo, o tempo não pára “

“Somos iguais em desgraça”
“Só as mães são felizes”
“Todo amor que houver nessa vida”

“Ser teu pão, ser tua comida”
“Faz parte do meu show”

Mas tenho ascendente em peixes. O dia vai nascer feliz.
E daí?

sexta-feira, maio 13, 2005

Renascendo

Eram mais de quinze dias de tristeza. Aquilo já estava incomodando.
- Espera aí rapaz! Que é isso? Pensava.
Existe uma patologia que define esse negócio do cara falar com ele mesmo, mas não estava ligando para isso.
- Que você fez para estar nessa situação? Deixa de ser bobo, vá à luta. Insistia consigo mesmo.
Ficava lá, parado, pensando. Parecia um bobo mesmo. Para quem não o conhecesse era um bobo.
Cansou de esperar. A sua natureza astrológica aflora. Às favas o ascendente, era evidente o signo solar.
Levantou, tomou um banho demorado.
Ligou o rádio. Transcreveu num bilhete, uma letra de música de Francis Hime e Chico:
Mas devo dizer que não vou lhe dar o enorme prazer de me ver chorar, nem vou lhe cobrar pelo seu estrago...
Passou a limpo e mandou para ela, mesmo sem saber se leria. Isso já não tinha importância.
Tomou um chope com amigos, falou de futebol e mulheres. Já de saída, perguntaram por Fullana. Ele praguejou feliz.
- Aquilo não vale uma gota da minha porra!
Os amigos estranharam, mas riram, solidários. Ele era franco.
Voltou para casa e masturbou-se, pensando nela, claro.
O amor não passa tão rápido assim. Devagar com o andor.
Também não chorou mais, isso é verdade. Estava renascendo.

quarta-feira, maio 11, 2005

Canção

Infelizmente, o tempo me recolocou no arame. Meu pai teve uma breve crise. Felizmente, dessa vez mais esperto, pulei junto com ele, seguramos firme e acredito que ele logo estará melhor. Mas as marcas ficam. O susto da perda, a angústia da decisão, o cansaço do corpo.
Sem saber onde buscar forças abri um livro, virtual, e me deparei com essa pérola da Cecília Meireles. Nossa, que coisa linda! Realmente, não podemos deixar o amor passar. Seja ele qual for.

Canção
Cecília Meireles

Não te fies do tempo nem da eternidade
que as nuvens me puxam pelos vestidos,
que os ventos me arrastam contra meu desejo!
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã eu morro e não te vejo!

Não demores tão longe, em lugar tão secreto,
nácar de silêncio que o mar comprime,
ó lábio, limite do instante absoluto!
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã eu morro e não te escuto!

Aparece-me agora, que ainda reconheço
a anêmona aberta na tua face
e em redor dos muros o vento inimigo...
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã eu morro e não te digo...

segunda-feira, maio 09, 2005

Suíte 102

- Ai, meu Deus! Não gosto de Motel.
- Porque?
- Tem uma vibração pesada. Parece que tem maus fluidos. Posso levar um turíbulo?
- Turíbulo? Para quê? Ele levou um susto.
- Para dar uma defumadinha antes. Pode? Fullana derramava-se em charme.
Ele sorria, achava que era piada. Ela insistia na necessidade de defumar o ambiente antes de entregarem-se ao amor num motel.
- Não sou de freqüentar esses ambientes, acho que vou estranhar.
- Ta bom, pode levar. Concordava ele.
Foram. Estava disponível a suíte 102.
Entraram sem turíbulo, nem defumador. Esqueceram. Era de menor importância.
Despiram-se entre beijos e carícias. Ela molhou os cabelos a pedido dele. Tinha tara nos cabelos molhados dela. Ela alimentava.
Entregaram-se ao sexo erótico e amoroso. Amavam-se e desejavam-se.
Ela, como sempre, gozando setenta e tantas vezes. Ele, nem tantas. Às vezes apenas uma única vez, suficiente para experimentar o doce prazer dela a banhar-se nele.
Ele era um show, Fullana afirmava. Ela dava o show, ele admirava.
O tempo passou sem perceberem. O tempo e o turíbulo já não tinham a menor importância. O motel sim, era sempre o mesmo.
Sempre que chegavam, a suíte 102 estava lá, arrumada, com suas paredes em tom de verde suave, sua iluminação discreta e aquela banheira dupla esperando o casal. Estavam em casa.
Mesmo assim, sempre exaustos após o sexo, ela fazia questão de velar, abraçada, o rápido sono dele. Era para protegê-lo dos maus fluídos.
Que mulher!

quarta-feira, maio 04, 2005

Malditas Correntes

Nunca gostei nem acreditei em correntes. Por isso resolvi ignorar Santos Passos e Branco Leone. Mas, considerando que: minha mulher brigou comigo, minha conta virou, o carro enguiçou e o único cachorro que conheço está me estranhando, vou capitular. Lá vai….

Ex-Libris da Tugosfera
Não podendo sair do Fahrenheit 451, que livro quererias ser?
Para botar fogo, nenhum. Na pior das hipóteses servem para calçar a porta quando venta. Mas tem umas coisinhas que bem que merecem, em especial livros de auto-ajuda.

Já alguma vez ficaste apanhadinho(a) por um personagem de ficção?
Já, aliás, estou. Fullana Maria é um personagem de ficção. Imprevisível, incerta, insaciável (goza 72 vezes) e inverídica, infelizmente assim se fez. Gosto dos personagens do Suassuna. Quando menino gostava dos personagens do Carlos Zéfiro. Carregava alguns livrinhos dentro da cueca, para esconder da minha mãe, claro!

Qual foi o último livro que compraste?
Mitologia dos Orixás. Um livro de mitologia africana que não deixa nada a desejar a qualquer outra mitologia.
Romance da Pedra do Reino, de Ariano Suassuna. Comprei num sebo, velho, usado, maravilhosamente fantástico e delicioso.

Que livros estás a ler?
Sempre leio vários livros ao mesmo tempo. Estão todos lá, marcados mas parados . Uma hora dessas eu continuo. Tenho tentado escrever mais.

Que cinco livros levarias para uma ilha deserta?
Como se trata de uma ilha deserta levaria livros que me demandassem muito tempo.
Humano, demasiado humano. Nietzsche.
Romance da Pedra do Reino, Ariano Suassuna.
Trilogia Suja de Havana, Pedro Juam Gutiérrez.
Vários livrinhos do Carlos Zéfiro, para meus momentos de solidão.
Marcadores de livros com fotos de Fullana Maria, para meus momentos de inspiração.

6. A quem vais passar este testemunho (três pessoas) e por quê?
Primeiro, para DespenteadaMental: porque sabe tudo de poesia e um pouquinho mais.
Segundo, para palavra p, da Ana Peluso: porque não a conheço , mas leio sempre. É fera, muito boa de se ler e deve ter o que dizer.
Terceiro, pro Grimble: porque não respondeu ao Branco Leone e espero que responda a esta, senão, é praga dobrada.

segunda-feira, maio 02, 2005

Amor pelos Retratos

Te amei intenso,
como intenso é o amor.

Te amei e te amo
Enquanto amor houver
Mesmo sufocado em travesseiro de macela.

Ausente, te amo pelos retratos
Impregnados pela tua presença,
ainda coloridos em imagens de amor
que agora é preto e branco.
Gravados num tempo
que nunca irá.

Retratos espalhados pela cama,
pelas paredes, pelo chão,
pelo vento a te chamar,
pelo tempo de espera,
pelo nada,
por um amor vão.
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