quinta-feira, novembro 03, 2005

Anatomia de Fullana, O Coração

Contemplava a sobremesa que nem havia pedido. Um pudim com aquela ameixa em forma de coração. Negra, seca, retorcida e aparentemente doce.
Passou quase o tempo todo calado e comeu sem gosto. Sofria a tristeza da perda. Definitiva.
O almoço entre os dois amigos fora marcado de improviso. Não se viam há algum tempo e a euforia de um telefonema motivara o reencontro.
O restaurante foi o de sempre.
- Diga lá meu camarada! Saudaram-se
Abraçaram-se calorosamente. Falaram bobagens, riram muito e pediram o almoço.
- Faz tempo que não te vejo. Também, você sumiu.
- Pois é, sumi mesmo. Mas conta aí. E o pessoal como vai?
- Estão bem. Aquele bando de sacanas.
- E o Barcelos?
- Você soube do Barcelos?
- Soube que está internado. Fiquei preocupado com ele.
O amigo percebera que ele não sabia do ocorrido. Mudou o tom, parou de sorrir e largou o garfo sobre o prato.
- Então você não soube do Barcelos.
- Não? Que houve?
- Ele morreu.
Parou num choque que lhe tomou todo o íntimo.
- O Barcelos morreu? Sabia que ele estava doente, mas morreu?
- Pois é, foi há uns quinze dias. O enterro foi no dia seguinte. Infecção generalizada.
- Não sabia. Eu gostava muito dele, era meu amigo há muitos anos.
- Pensei que você soubesse. Me desculpe, mas imaginei que Fullana tivesse te avisado.
- Não, não avisou.
O almoço não foi mais o mesmo. Falaram um pouco mais. O amigo ficara visivelmente constrangido por não ter dado a notícia a tempo, mas também não compreendia porque Fullana não o fizera. Preferiu não comentar. Sabia do distanciamento incompreensível.
Pediram a sobremesa de sempre, pudim de leite. Ele comeu o pudim enquanto observava a ameixa que ficou no prato.
Despediram-se e o amigo se foi.
Seguiu cabisbaixo ainda desnorteado pela notícia. O impacto pela perda do amigo era forte e a impossibilidade de prestar uma última e sincera homenagem desarticulou seus pensamentos.
Mas nada se comparou à constatação da frieza do coração de Fullana que, mesmo diante da morte e da dor, não foi capaz de um gesto fraterno comunicando apenas a morte do amigo em comum.
Caminhou pensando nos corações tristes e ignorantes que conhecera e lembrando daquela ameixa negra, seca, enrugada e aparentemente doce. E ela tinha a forma de um coração, de Fullana.
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